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Alicia Klein

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mandamento do saber negro: Daí de graça o que custou caro para obterdes

Jornalista Natalia Andrade - Arquivo pessoal/Instagram
Jornalista Natalia Andrade Imagem: Arquivo pessoal/Instagram

18/05/2021 12h37

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O texto abaixo foi escrito por Natalia Andrade, jornalista, assessora de imprensa e responsável pelo portal de cobertura do futebol feminino @onzeminas. Atendeu ao chamado da coluna para abordar o racismo no esporte.

A intelectualidade negra nunca foi respeitada nesse país. Machado de Assis, para ser o maior escritor nacional, foi embranquecido a ponto de muitos demonstrarem surpresa ao descobrir que o maior clássico da literatura brasileira foi escrito por um preto.

Quando se trata de mulheres pretas esse quadro só se agrava. Nosso conhecimento, além de questionado, tem de ser repassado como um favor, já que a sociedade encara como um favor termos tido acesso a tal conhecimento. Não importa se pagamos por ele, se dedicamos tempo e abdicamos de inúmeras outras coisas. Se a bíblia fala sobre dar de graça o que de graça recebemos, a realidade mostra que temos que dar de graça o que nos custou muito caro.

E quando não nos enxergam como seres intelectualmente capazes, ficamos relegados a posições inferiores, dependentes do vigor físico, tal qual burros de carga. Essa imagem tem raízes profundas na crença de que não temos alma, logo, o dom da sabedoria não nos seria concedido. Aprendemos a admirar a engenharia das pirâmides do Egito e a beleza das igrejas de Ouro Preto, ignorando que ambas saíram das mãos e do conhecimento de pessoas negras.

Isso nos leva a ausência de pessoas negras em espaços onde o conhecimento se faz necessário, como é o caso do jornalismo. E se homens negros são poucos, mulheres negras são tão raras que podem ser contadas nos dedos. De uma só mão.

Ao olhar para mulheres negras se enxerga de tudo, menos conhecimento ou capacidade. Ainda que nós tenhamos que ser 10 vezes mais capazes e competentes que qualquer outra pessoa em qualquer situação e que nem isso nos coloque em condições de igualdade, isso nunca é reconhecido. Somos preteridas a todo o momento e nunca nos é permitido errar. Nem no trabalho nem na vida.

Nunca somos vistas, e quando somos, precisamos doar tempo e conhecimento de forma gratuita, ainda que outros estejam sendo pagos exatamente pelo mesmo serviço. É muito cômodo nos dar trabalho, mas quando se fala em emprego voltamos à invisibilidade.

Incontáveis as vezes que fui e sou convidada a opinar, escrever, falar e transmitir informação, sempre de forma gratuita. E quando se fala em remuneração, preterida. Isso se repete com todas as jornalistas negras que conheço, assim como pesquisadoras, cientistas, advogadas...

Inúmeras vezes fui usada como fonte para pessoas brancas que estavam sendo remuneradas por um conhecimento que era meu. Dizem que ser negro é ótimo, claro, quando não se sente na pele as dores que a cor nos traz. Vou além e afirmo que o saber negro é ótimo, principalmente quando vem envolto em uma embalagem branca de cabelos lisos. Se embranqueceram até Jesus, o que dizer de nós, reles mulheres negras?

Por muito tempo acreditei que não éramos vistas, um engano quase que infantil. Somos vistas, todos sabem onde nos encontrar. A questão é que não somos dignas de ocupar esses espaços, que o nosso saber é desvalorizado ou revertido em reconhecimento, como se um parabéns pagasse contas.

Me cansei de dizer que existimos, como se isso fosse uma novidade. Somos a maior parte da população deste país. Mas mais que existir - direito que constantemente nos é tirado - queremos mostrar a nossa existência e ser valorizadas por ela. Não só no dia da consciência negra, não só no próximo caso absurdo de racismo. Pessoas negras estão em todos os lugares, menos nos que nos fecham as portas e depois fingem não perceber a nossa ausência. Queremos dividir espaço, ocupar espaço. Não como um favor, uma caridade. Como iguais. Já mostramos inúmeras vezes que temos capacidade. A oportunidade cabe a vocês.