Medo da crise climática pode ser motor de transformação da sociedade

As chuvas de hoje já não são como as de antigamente. O calor escaldante ganhou outra dimensão e a intensidade dos ventos, das enchentes e das secas tem gerado transtornos cada vez mais intensos e frequentes para a população. Da zona rural às grandes metrópoles, ninguém sai totalmente incólume do aquecimento global.

Muita gente já percebeu que não há como escapar dessa discussão: de acordo com a pesquisa "Natureza e Cidades - a relação dos brasileiros com as mudanças climáticas", da Fundação Grupo Boticário em parceria com a Unesco, 8 em cada 10 pessoas estão preocupadas com o tema no país.

Nesse cenário, um dos sentimentos humanos mais básicos exerce um papel fundamental no dilema entre o enfrentamento ou a fuga do problema: o medo.

"Se você sofre de ansiedade climática, é porque você está consciente o bastante para ter esse sentimento. Quem não está preocupado não está bem informado ou não entendeu a situação adequadamente", reflete Karina Bruno Lima, divulgadora científica que pesquisa tempestades severas e desastres em seu doutorado de Climatologia na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

Para a pesquisadora, o principal complicador no debate sobre a crise climática é a demanda de mudanças estruturais na sociedade. "Isso ainda não é visto como uma prioridade, como o maior desafio da humanidade — e a nossa mentalidade precisa mudar."

O objetivo não é simples: para alcançar a meta mais ambiciosa do Acordo de Paris, seria necessário cortar 43% das nossas emissões de gases com efeito de estufa até 2030, limitando o aquecimento global a 1,5°C em relação ao período pré-industrial. Para muita gente, só de pensar, já dá desânimo e um nó na cabeça. O que se pode fazer pelo planeta?

"A resolução da crise climática é sistêmica, não individual. Mas nós, como indivíduos, podemos contribuir. Tem gente que diminui o consumo de carne, de plásticos, colabora com movimentos de ativismo climático e ambiental? Tudo isso é válido e importante, porque ajuda a criar uma onda de conscientização ao nosso redor para cobrar quem tem poder de decisão", diz Lima. "A partir do momento que a gente se conscientiza e passa a buscar ativamente informações sobre o tema, podemos tomar melhores decisões, como votar melhor, com mais consciência, escolhendo representantes que tenham esse tema como prioridade e, claro, aprendendo a cobrar responsabilidade climática dos nossos representantes."

Medo paralisante

Debora Tseng Chou, psiquiatra formada pela Universidade de São Paulo (USP), ajudou a conduzir uma pesquisa da Universidade de Yale (EUA) no Brasil sobre como crianças e adolescentes são afetados — ou não — pela ecoansiedade. Nossa relação com o medo em qualquer fase da vida revela muito sobre a condução da crise climática a nível global.

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"Alguns entrevistados de famílias ou escolas mais engajadas nas ações climáticas descreveram até crises de ansiedade relacionadas ao colapso ambiental. Ouvimos frases como 'nem quero falar sobre isso porque tenho muito medo'. A angústia era mais presente nos participantes com nível socioeconômico médio a alto, enquanto boa parte das crianças com maior vulnerabilidade aos transtornos climáticos desconhece o tema", relata.

A ecoansiedade pode nos colocar no limite entre se engajar ou paralisar diante do problema. Na visão de Chou, a maneira como as informações sobre as mudanças climáticas são veiculadas influencia diretamente a reação do público — seja para que muita gente tenha a sensação de que a crise está muito distante do seu cotidiano, o que prejudica a capacidade de agir, ou a percepção de que estamos diante de uma tragédia consumada e inevitável. Nesse caso, o resultado é apatia.

Mãos à obra

E o que fazer com quem não liga para o assunto?

Retratar as mudanças climáticas como caso perdido tende a produzir desânimo, mal-estar exacerbado e, claro, menos ação. "Uma comunicação efetiva sobre a crise climática vai, sim, gerar algum desconforto. Mas ela precisa ser feita de modo que as pessoas possam entender o problema como uma narrativa em aberto, com a possibilidade de que a ação humana, apoiada em criatividade e coletividade, possa levar a resultados melhores do que a gente espera", diz Chou.

Dentre as crianças entrevistadas, as que tinham a percepção de proximidade com as mudanças climáticas — sabendo que estão acontecendo perto, na própria cidade ou planeta, aqui e agora — maior era a percepção de risco e o engajamento. Isso faz sentido do ponto de vista evolutivo, porque o ser humano é treinado para se preocupar com aquilo que o afeta diretamente, produzindo mais preocupações e respostas fisiológicas. Assim, quem classifica um problema como urgente ou preocupante é justamente quem tende a se movimentar e buscar saídas para ele.

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No debate público sobre a ecoansiedade — ou a falta dela — também não falta cinismo. "Existe uma percepção de que qualquer emoção negativa ou qualquer emoção desconfortável deve ser eliminada. A gente vê muitos casos do tipo na clínica, e acredito que seja uma questão do nosso tempo de lidar com as emoções negativas. Não podemos deixar de entender que as emoções desconfortáveis têm um papel de gerar ação, mudanças e respostas", diz a psiquiatra.

Na opinião de Chou, é necessário que algum tipo de desconforto seja colocado para que uma mudança seja feita. "A gente não acredita que zero ansiedade é a melhor resposta, mesmo porque a ansiedade climática não é atualmente um diagnóstico médico. Trata-se de um fenômeno que está acontecendo com toda a nossa sociedade, envolvendo muitas pessoas nesse contexto. A ansiedade não precisa ser evitada. O que precisa ser evitado é a ansiedade debilitante que gera uma disfuncionalidade na vida da pessoa. Caso ela não coma, não durma ou não consiga exercer suas atividades, vale o encaminhamento para psicólogo ou psiquiatra."

E como se faz uma comunicação eficiente — mas não adoecedora — de um assunto tão urgente? Na avaliação de Chou, os veículos de comunicação e as escolas precisam ter consciência de como se constrói a narrativa de um problema que é real, ameaçador e grave como desafio a ser superado, não um apocalipse inevitável. "O que as pessoas precisam saber é que qualquer tipo de ansiedade ou sofrimento faz parte do nosso rol de emoções normais. Então, é necessário conscientizar essas pessoas que não estão conscientes, porque tanto elas quanto nós já estamos e continuaremos sendo afetados pelas mudanças climáticas."

A pesquisadora Karina Lima tem visão semelhante. Questionada sobre o que todo habitante da Terra deveria saber em 2024, concluiu: "Gostaria que todo mundo percebesse o que nós estamos fazendo com o planeta e, consequentemente, com as outras espécies que convivem com a gente. É o nosso único lar e não existe planeta B. É necessário dar o devido senso de urgência e importância a esse assunto, porque estamos em uma década decisiva que vai definir o futuro não só das próximas gerações como o nosso. Esse é o momento de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance pela causa."

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