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Acusada de prostituir meninas, ela foi presa por organizar futebol feminino

Capa Jornal Imparcial de 11 de janeiro de 1941 noticia a prisão de Dona Carlota. No centro da ascensão das mulheres nos gramados estava uma senhora de sessenta e poucos anos, que acabou presa injustamente - Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil
Capa Jornal Imparcial de 11 de janeiro de 1941 noticia a prisão de Dona Carlota. No centro da ascensão das mulheres nos gramados estava uma senhora de sessenta e poucos anos, que acabou presa injustamente Imagem: Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil
Camilla Freitas e e Carolina Juliano

De Ecoa, em São Paulo (SP)

20/07/2023 06h00

Em meados de janeiro de 1941, dois comissários de polícia chegaram à rua Gaspar, 45. O endereço abrigava a sede do Primavera Atlético Clube, maior time de futebol feminino do Rio de Janeiro.

A ordem era para prender Carlota Alves de Resende, dirigente do clube.

Dona Carlota, como era conhecida, foi entregue ao terceiro delegado auxiliar sob a acusação de "encaminhar as moças componentes dos teams para os dancings da cidade e para outros destinos", conforme descreveu o jornal A Batalha, em 12 de janeiro de 1941.

Ela também teve que lidar com o fato de a sua casa e sede dos clubes ser chamada de "antro de perdição".

Dona Carlota ficou presa por apenas 48 horas porque as acusações eram infundadas. Isso, contudo, marcou para sempre a realidade do futebol feminino no Brasil.

Capa do Jornal A Noite noticia a prisão de Dona Carlota.  - Capa Jornal A Noite 10,jan, 1941 - Biblioteca Nacional Digital Brasil - Capa Jornal A Noite 10,jan, 1941 - Biblioteca Nacional Digital Brasil
Capa do Jornal A Noite noticia a prisão de Dona Carlota. Na casa de Dona Carlota, segundo os jornais da época, as mulheres falavam alto, bebiam e jogavam jogos de azar. Isso foi o suficiente para a polícia, entender que a dirigente vendia o corpo daquelas mulheres para danças em clubes e até para a prostituição.
Imagem: Capa Jornal A Noite 10,jan, 1941 - Biblioteca Nacional Digital Brasil

Ela organizou ligas e campeonatos femininos

Não se sabe muito sobre a vida pessoal de Dona Carlota. Relatos da época dão conta de que era uma mulher de origem humilde, que nasceu em Pilares, no subúrbio do Rio de Janeiro, e tinha contatos estreitos com dirigentes esportivos.

No final dos anos 1930, ela organizou em sua casa o time feminino de maior evidência na época: o Primavera Atlético Clube.

Ela também chegou a organizar outros clubes, em outros bairros, e como uma dirigente experiente, montou ligas e campeonatos entre os times femininos.

Carlota - Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil - Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil
Imagem: Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil

No início dos anos 1940, o Rio de Janeiro tinha 15 equipes competindo entre si, a maioria organizada por ela.

A modalidade estava se tornando tão popular que dois clubes, o Cassino do Realengo e o Sport Club Brasileiro, foram chamados para fazer um jogo preliminar no recém-inaugurado Estádio do Pacaembu, onde jogariam os times masculinos de São Paulo e Flamengo.Foi dona Carlota quem organizou essa viagem.

As críticas machistas que levaram o futebol feminino a ser proibido

Como ainda não era comum ver mulheres jogando futebol, as equipes formadas por Dona Carlota ganharam notoriedade e espaço nas páginas dos jornais esportivos da época. Consequentemente, as jogadoras começaram a ser remuneradas por suas apresentações. Esse foi um dos motivos de indignação da sociedade que levou à proibição do futebol feminino.

Carlota - Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil - Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil
Equipes femininas do Cassino do Realengo e Sport Club Brasileiro em jogo no Estádio do Pacaembu, em SP
Imagem: Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil

O jogo no Pacaembu foi assistido por um público de 65 mil pessoas, segundo a imprensa da época, deu ainda mais visibilidade à prática do futebol feminino, e a modalidade passou a receber fortes críticas.

O jornal A Noite divulgou, uma semana antes da partida no Pacaembu, uma carta endereçada a Getúlio Vargas por um cidadão chamado José Fuzeira, alertando o presidente sobre os perigos que a prática do futebol poderia provocar nas mulheres.

As críticas tinham como base argumentos médicos, que defendiam que o futebol poderia prejudicar a função reprodutora das mulheres. Mas também tentavam desqualificar moralmente a prática da modalidade, associando o futebol à perda da reputação da mulher na sociedade.

Denúncia e prisão

Na época em que Carlota Alves de Resende foi presa no Rio de Janeiro ela estava organizando junto com o empresário argentino Afonso Doce uma excursão do Primavera por diversos países da América Latina.

D. Carlota, a "paredra" do football feminino, protesta a inocência - Está na 'cerca' com todo o team - A "concentração" na Polícia - Do ground para os "dancings" - O "bicho" das jogadoras - Leônidas de saias - Aviso sobre o batom e o rouge (Texto na Página 3)

Chamadas da capa do jornal A Noite de 11 de janeiro de 1941

Segundo o livro 'Deve ou não deve o football invadir o domínio das saias? Histórias do futebol e mulheres no Brasil', de Caroline Almeida, a excursão de jovens jogadoras ao exterior ia ao encontro do projeto político do Estado Novo, pois o futebol era considerado um forte símbolo nacional e "seria uma afronta homens estrangeiros custearem a exibição dos corpos de mulheres brasileiras em outro país".

No entanto, a prisão de Dona Carlota fortaleceu a campanha contra o futebol feminino no Brasil, culminando na sua proibição pelo artigo 54 do Decreto-Lei nº 3.199, publicado em 1941.

Notícia de jornal contrária à prática de futebol por mulheres - Arquivo Nacional/Museu do Futebol - Arquivo Nacional/Museu do Futebol
Apesar da efervescência que vivia o futebol feminino no início dos anos 1940 com partidas que chegavam a ser vistas por mais de 60 mil espectadores, muitos jornais ainda se posicionavam contra a prática.
Imagem: Arquivo Nacional/Museu do Futebol

A lei decretada pelo então presidente Getúlio Vargas, dizia: "às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza".

O Decreto ficou em vigor até 1979, quando foi extinto pelo Conselho Nacional de Desportos. Durante esse período, surgiram algumas organizações para a prática do futebol feminino, porém foram coibidas pela Justiça, pela polícia ou mesmo criticadas socialmente.

Atualmente, apesar das dificuldades que enfrenta, o futebol feminino no Brasil tem prosperado muito pela força de suas atletas. Apesar de nunca terem ganhado uma Copa do Mundo, as brasileiras entrarão em campo mais uma vez para buscar o título inédito.

Marta, camisa 10 da seleção feminina - Pier Marco Tacca/Getty Images - Pier Marco Tacca/Getty Images
Marta é a maior vencedora dos prêmios de melhor jogadora do mundo com seis estatuetas. Além disso, ela é a maior artilheira da história das Copas do Mundo com 17 gols, também é a maior artilheira da história da seleção brasileira com 122 gols
Imagem: Pier Marco Tacca/Getty Images

A estreia do Brasil na competição está marcada para a próxima segunda, 24, contra o Panamá, às 8h (horário de Brasília) no Hindmarsh Stadium, na Austrália.

A história de jogadoras como Rafaelle,Tamires, Gabi Nunes e Marta só poderão ser escrita na competição porque antes delas vieram mulheres como Dona Carlota que foram fundamentais para incentivar o futebol feminino no Brasil.

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Um fazendeiro excêntrico cria um safári africano no Brasil. Uma cidade famosa por seus... caixões. Em 'OESTE', nova série em vídeos do UOL, você descobre estas e outras histórias inacreditáveis do interior do país. Assista:

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