Topo

Ateu e comunista, Jorge Amado criou lei que proíbe perseguição religiosa

Escritor baiano Jorge Amado foi criador da lei que garante liberdade religiosa no Brasil - Getty Images
Escritor baiano Jorge Amado foi criador da lei que garante liberdade religiosa no Brasil Imagem: Getty Images

De Ecoa, em São Paulo (SP)

10/08/2023 06h00

Uma semana após a morte de Jorge Amado, em 6 de agosto de 2001, uma coisa extraordinária aconteceu.

Uma gameleira nasceu no quintal da casa do escritor, sem que ninguém a tivesse plantado. A árvore é sagrada no candomblé de rito nagô, pois é onde habita o orixá Irocô.

A relação entre Jorge Amado e o candomblé é tremenda. Ao longo de sua vida, ele recebeu uma série de títulos de pais e mães de santo. Entre eles, o escritor foi Obá de Xangô no terreiro da mãe Stella de Oxóssi.

Apesar disso, Jorge Amado era ateu, o que não o impediu de lutar pela liberdade religiosa no país.

Enquanto foi deputado eleito pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB-SP), ele criou a lei que proíbe a perseguição religiosa no Brasil.

 Mãe Stella de Oxossi - Reprodução/Facebook/maestelladeoxossi - Reprodução/Facebook/maestelladeoxossi
Mãe Stella de Oxossi
Imagem: Reprodução/Facebook/maestelladeoxossi

O que diz a lei

Jorge Amado foi deputado federal pelo Partido Comunista de 1946 a 1948. Apesar da breve passagem como parlamentar, ele deixou o legado da emenda 3.218 à Constituição Brasileira promulgada em 1946.

O texto tratava da proteção do livre exercício de crença religiosa, ou seja, qualquer religião poderia expressar-se sem ser reprimida pelo Estado ou por seus cidadãos.

Antes da promulgação da primeira Constituição republicana em 1891, o catolicismo era a religião oficial do Estado e a única permitida, o que significava que muitas questões do dia a dia das pessoas estavam ligadas à Igreja.

Jorge Amado com a mãe-de-santo Mãe Menininha do Gantois na década de 1970. - Acervo UH/Folhapress - Acervo UH/Folhapress
Jorge Amado com a mãe-de-santo Mãe Menininha do Gantois na década de 1970.
Imagem: Acervo UH/Folhapress

Por exemplo, no período pré-republicano, atividades como o registro de nascimento e o casamento estavam sob a responsabilidade exclusiva das paróquias católicas.

Dessa forma, o candomblé, assim como outras religiões associadas aos negros brasileiros, enfrentou intensa perseguição por parte dos governos, da polícia e da sociedade, sendo rotulado de forma preconceituosa como algo associado ao diabo.

Assim, ao longo de mais de um século, terreiros foram invadidos, vandalizados e fechados, e seus líderes e seguidores foram perseguidos e até presos.

mulher adepta candomblé religião proteção espiritual - Joa_Souza/Getty Images - Joa_Souza/Getty Images
O candomblé se formou no Brasil no século xix e esteve até os anos 1960, mais ou menos, restrito à Bahia, especialmente a Salvador e cidades do Recôncavo Baiano.
Imagem: Joa_Souza/Getty Images

No entanto, quando Jorge Amado propôs criar uma lei que garantisse a liberdade religiosa no país, ele sofreu resistência dentro de seu próprio partido. Parte do PCB via a religiosidade como uma forma de manipulação da população.

Mas isso não o impediu de propor a emenda que foi posteriormente aprovada e que hoje consta na Constituição, no sexto inciso do Artigo 5:

"É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias."

Mais que uma religião, o candomblé tem sido uma fonte importante na formação da cultura brasileira.  - Lucas Ninno/Getty Images - Lucas Ninno/Getty Images
Mais que uma religião, o candomblé tem sido uma fonte importante na formação da cultura brasileira.
Imagem: Lucas Ninno/Getty Images

O texto da emenda proposta pelo escritor ficou assim:

"É inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos, exceto aqueles que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica de acordo com a lei civil."

O que dizem os livros de Jorge Amado

Jorge Amado escreveu 33 romances. Ao todo, são 20 milhões de livros vendidos em todo o planeta, uma obra traduzida para 49 idiomas.

Muitos de seus livros abordam a religiosidade, seja por meio de seus temas centrais ou através de um ou outro personagem.

Jorge Amado - Divulgação - Divulgação
Durante quatro décadas Jorge Amado ocupou a cadeira número 23 da Academia Brasileira de Letras (ABL). Antes, a cadeira havia sido de José de Alencar e Machado de Assis, o fundador da Academia.
Imagem: Divulgação

Em "Jubiabá", romance publicado em 1935, a relação com a religião fica clara já no título, que faz referência ao nome do pai de santo, personagem principal da história. Ao longo do enredo, em diversas passagens, o autor descreve com detalhes os rituais de candomblé.

Já em "Tenda dos Milagres", publicado em 1969, as menções às religiões afro-brasileiras são diversas, desde o personagem central do romance Pedro Archanjo à mãe-de-santo, líder religiosa do candomblé, Majé Bassã.

Jorge Amado morreu no dia 6 de agosto de 2001, quatro dias antes de completar 89 anos. - Niels Andreas/Folhapress - Niels Andreas/Folhapress
Jorge Amado morreu no dia 6 de agosto de 2001, quatro dias antes de completar 89 anos.
Imagem: Niels Andreas/Folhapress

O livro também aborda a perseguição aos terreiros pela polícia. O personagem que faz as perseguições é o delegado Pedrito Gordo, uma referência a Pedro Gordilho, que foi delegado e chefe de polícia da cidade de Salvador durante a década de 1920 e que se tornou famoso por sua truculência e pela perseguição ao candomblé.

Além de escritor, quem foi o político Jorge Amado?

Jorge Amado nasceu em 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, em Itabuna, no sul da Bahia. Filho de fazendeiro de cacau, com um ano de idade, contudo, ele se mudou para Ilhéus, onde passou a infância.

O escritor foi militante comunista e, durante o Estado Novo, ditadura instaurada por Getúlio Vargas, foi obrigado a exilar-se na Argentina e no Uruguai entre 1941 e 1942. Antes disso, em meados da década de 1930, viu quase dois mil exemplares de seu livro "Capitães da Areia" serem queimados em praça pública, sob a alegação de propaganda comunista.

Em 1945, Jorge Amado foi eleito membro da Assembléia Nacional Constituinte, na legenda do Partido Comunista Brasileiro (PCB), tendo sido o deputado federal mais votado do Estado de São Paulo. - Moreira Mariz/Folhapress - Moreira Mariz/Folhapress
Em 1945, Jorge Amado foi eleito membro da Assembléia Nacional Constituinte, na legenda do Partido Comunista Brasileiro (PCB), tendo sido o deputado federal mais votado do Estado de São Paulo.
Imagem: Moreira Mariz/Folhapress

Em 1947, o PCB foi declarado ilegal, seus membros perseguidos e presos, e Jorge Amado teve que se exilar novamente. Dessa vez, ele foi com a família para a França, onde ficou até 1950.

De volta ao Brasil, Jorge Amado afastou-se, em 1955, da militância política para dedicar-se exclusivamente à literatura, sem deixar o Partido Comunista.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Anteriormente, o texto afirmava que o personagem Pedro Archanjo era um professor estrangeiro, a informação foi checada e alterada.