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Daniel Munduruku, o indígena que a Globo quer ouvir

Daniel Munduruku, contratado pela Globo como ator e consultor de novela, e a atriz Tata Werneck - Reprodução twitter.com/DMunduruku
Daniel Munduruku, contratado pela Globo como ator e consultor de novela, e a atriz Tata Werneck Imagem: Reprodução twitter.com/DMunduruku

Edison Veiga

Colaboração para Ecoa

21/01/2023 04h00

"Esta semana passei a ser funcionário da Globo por um ano. Prestarei consultoria e irei atuar em uma novela das 21:00", escreveu, no Twitter, o escritor Daniel Munduruku, no último dia 12. "Será uma experiência e tanto! A voz indígena ecoará ainda mais longe. Sawé!!!"

Expressão própria da comunidade Munduruku, "sawé" é um misto de saudação com um grito de guerra. Quatro dias depois, o escritor fez um novo post na rede social descrevendo o começo do trabalho, com "preparação, ensaios, leituras, roteirização". "Conhecendo gentes novas e abraçando outras gentes conhecidas", comentou. "Sempre com muito respeito, mas com a segurança de quem tem algo para oferecer." E repetiu a saudação.

Escritor e intelectual

Nascido em fevereiro de 1964, Daniel Munduruku é um dos mais importantes escritores e intelectuais indígenas do país. Ele já publicou 57 livros e acumula reconhecimentos oficiais que vão de dois prêmios Jabuti a uma láurea da Unesco, passando por duas ordens do mérito cultural e um prêmio da Academia Brasileira de Letras.

Ainda pouco se sabe, exatamente, sobre qual está sendo (e vai ser) o trabalho dele na Globo. Por meio da sua assessoria de imprensa, a emissora disse a Ecoa que só vai dar mais detalhes quando estiver na hora de divulgar a nova novela. Gentilmente, Daniel também negou o pedido de entrevista, alegando que depende de autorização da TV.

O que se sabe até o momento é que a trama global tem estreia prevista para abril, sucedendo a atual 'Travessia', que ocupa o horário nobre. Deve se chamar 'Terra Vermelha' — título ainda em avaliação. É uma novela do dramaturgo Walcyr Carrasco, terá no elenco nomes como Tony Ramos, Gloria Pires e Cauã Reymond, e deve ter como eixo condutor o universo do agronegócio no estado do Mato Grosso em constante conflito com povos indígenas.

Em sua coluna na 'Folha de S. Paulo', a jornalista especializada em TV Cristina Padiglione atentou para o gesto inédito da emissora líder de audiência no país:

A novidade mesmo é a Globo se valer oficialmente de um representante com lugar de fala para abordar questões referentes aos povos originários, que finalmente voltam a ganhar protagonismo também no cenário político nacional.

Doutor e candidato a prefeito

A grandeza de Daniel Mundukuru não se limita à farta bibliografia publicada, aos prêmios e ao fato de ser um expoente intelectual do mundo indígena. Ele também tem uma renomada carreira acadêmica. É doutor em educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em linguística pela Universidade Federal de São Paulo.

Munduruku - Reprodução Twitter - Reprodução Twitter
Munduruku celebra encontros com personalidades como Tony Ramos em suas redes sociais
Imagem: Reprodução Twitter

Em 2020, foi candidato pelo PC do B a prefeito de Lorena, no interior paulista. Acabou em terceiro lugar, com 3,25% dos votos. No ano passado, pelo PDT, tentou uma cadeira na Assembleia Legislativa de São Paulo — mas também não foi eleito.

Em entrevista dada a Ecoa no ano passado, ele comentou como entende que o Estado brasileiro deve proceder para que os povos originários sejam protegidos. "O papel do Estado brasileiro é oferecer condições para que os indígenas mantenham o seu modo de vida, a sua integridade física, e consigam fazer talvez essa junção entre pensamentos", afirmou. "Os indígenas podem extrair da sua floresta matéria-prima para ser usada na indústria farmacêutica, por que não? Mas tem que ser no tempo deles, na lógica deles."

Lugar de fala

Sua consultoria deve render, espera-se, muito mais realismo à maneira como a novela vai abordar o universo indígena. Nuances que ele conhece muito bem - tem "lugar de fala", como costuma-se dizer hoje. Um exemplo dessas diferenças culturais foi como ele explicou, na entrevista concedida no ano passado, a maneira como os indígenas encarar o trabalho.

"Entre os indígenas, não existe separação entre trabalho e diversão, trabalho e aprendizado, trabalho e prazer. Os povos indígenas entendem a vida de uma forma holística, cíclica, circular", explicou. "Uma criança indígena acompanha os pais em tudo o que fazem. Se a mãe vai na roça plantar uma mandioca ou coletar uma fruta, fazer qualquer serviço, a criança vai junto."

"Existe uma pedagogia em cada ação, e ela é o caminho para formar um munduruku como uma pessoa completa, se entender como munduruku no mundo", acrescentou.

Agora essa pedagogia munduruku, ou a pedagogia do Daniel Munduruku, vai se espalhar por toda a audiência da TV Globo.