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'Não serei marionete': Hortas ajudam vítimas de violência doméstica

Elena - Associação de Agricultores da Zona Leste (AAZL)
Elena Imagem: Associação de Agricultores da Zona Leste (AAZL)

Maiara Marinho

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

21/12/2022 06h00

Atualmente, 102 hortas urbanas estão espalhadas pela capital paulista. O que poucos sabem é que elas são uma forma de combater a violência doméstica e ajudar na independência de moradoras das periferias de São Paulo.

Essas horas são fruto de uma parceria com o poder público, que em alguns casos oferece o terreno para a formação das hortas ou algum investimento para manutenção, e com o empenho e compromisso da sociedade civil.

A principal razão dessas pessoas quererem exercer atividade de horticultura é a memória afetiva de infância. Por que são oriundos de regiões rurais do Brasil; vieram, nasceram e foram criados em chácaras, fazendas, sítios. Tem essa ruralidade muito forte na memória. Laura Martins de Carvalho, socióloga e doutora em Saúde Global e Sustentabilidade (USP).

Laura Martins afirma que a agroecologia ajuda na libertação de mulheres em situação de violência doméstica. É o que a socióloga descreve no seu livro e de Márcia Tait, o "Agricultura na cidade: o cultivo de alimentos e do comum pelas mulheres", lançado no último sábado (26) no SESC Itaquera.

Em conversa com as agricultoras, Laura identificou que muitas delas haviam saído de relacionamentos abusivos após integrar algum coletivo de horta urbana com outras mulheres.

O objetivo inicial da pesquisa de Laura era analisar os processos de gestão da horta e a relação com o poder público e com o poder privado. Mas, ao perguntar por que aquelas mulheres estavam ali, elas começavam a contar sobre suas vidas: "Aí falavam da situação com o marido", diz Laura. Sua conclusão foi de que as hortas ajudaram a libertar essas mulheres através da agroecologia.

'No trabalho de uma formiga no formigueiro, uma ajuda a outra'

2 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
'Não serei marionete na sua mão': Hortas ajudam vítimas violência doméstica - Joelma
Imagem: Arquivo pessoal

Em 1989, a baiana Joelma Marcelino dos Santos migrou para São Paulo com o tio e a tia, aos 16 anos. Hoje, aos 49, moradora de São Miguel Paulista, é uma das mulheres do GAU na horta do bairro União de Vila Nova.

Ao lado de outras nove companheiras, planta abacate, manga, laranja, abacaxi, hortaliças, banana, taioba, ora-pro-nóbis, "são dois mil metros quadrados de agrofloresta no meio urbano e alimentação saudável no bairro periférico, a comunidade fica encantada com o trabalho", conta.

No terreno, cedido pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), as mulheres do GAU, um movimento nacional, montam cestas em uma parceria com uma escola onde é feito tratamento em crianças com obesidade ou desnutrição. "Eles compram a cesta da gente já gerando uma renda para as mulheres que trabalham ali". No local, um mercado aberto recebe quem chega para comprar os alimentos.

Há três anos no coletivo, Joelma é uma das mulheres que viveu debaixo de um teto com um marido que a impedia de ver pessoas, conversar com amigas e trabalhar fora. Durante quinze anos, foi vítima de violência doméstica. Até que um dia, em 2017, ela falou ao ex-marido "chega, não vou ser mais marionete na sua mão".

Ele foi embora de casa, mas precisou voltar pois adoeceu e Joelma foi sua cuidadora, mesmo separada. Nessa época, com o ex-marido desempregado e de volta à casa, ela precisou recorrer a uma renda maior. Sua vizinha e amiga, Vilma, comentou com ela sobre a horta organizada pelas mulheres do bairro, uma horta agroecológica e feminista.

"Quando eu cheguei lá eu me reencontrei na minha infância naquele espaço maravilhoso que eu falo que é um oásis em meio a selva de pedra". Em 2018, Joelma ficou viúva.

Joelma é uma mulher muito simpática e gentil. Ao conversar com ela é possível notar que ser uma agricultora agroecológica é o que dá sentido a sua vida nova. Para ela, o contato com a terra curou a alma e o corpo.

O fortalecimento de laços com outras mulheres é o alicerce do coletivo das mulheres do GAU. Para ela, esses gestos de solidariedade são como em um trabalho no formigueiro, "uma ajuda a outra".

Estamos sempre resgatando as mulheres vítimas de violência doméstica e ajudamos as mulheres que têm criança, que às vezes não têm com quem deixá-las. Joelma, agricultora do GAU.

Quando começou a atuar no coletivo e na horta, Joelma sofria com obesidade e depressão. Através do contato com tanta variedade de alimentos saudáveis, mudou a alimentação e foi gradualmente liberada da receita médica que seguia há anos. "

Melhorei através dos chás, da alimentação, de eu saber que eu estou produzindo alimento sem agrotóxico e resgatando da minha infância", diz.

'As mulheres chegam na horta e se sentem maravilhosamente bem'

5 - Arquivo pessoal/Joelma - Arquivo pessoal/Joelma
"As mulheres chegam na horta e se sentem bem"
Imagem: Arquivo pessoal/Joelma

A mineira Guaraciaba Elena Aparecido, 70, criada em São Paulo desde os três meses de idade, cultiva a agroecologia no chão paulistano desde 1986 na horta comunitária da Vila Nancy, em Guaianases, zona leste da capital.

Para ela, que nunca viveu situação de violência doméstica, o feminismo é inevitável naquele local gerido por mulheres, que, "na horta, se sentem maravilhosamente bem".

Na horta da Vila Nancy, colocar a mão na terra não é a única atividade terapêutica. Por lá, Elena conta que chegam mulheres com relatos de abuso, ansiosas e cansadas, que são prontamente acolhidas.

Em Guaianases a horta era registrada como comunitária, então servia como um espaço dedicado a fazer doações, sem geração de renda. Em 2013, passou por uma transição para a modalidade de agricultura familiar e, a partir daí, começou a ser fonte de renda para as mulheres. No espaço também cedido pela prefeitura, são oito mil metros de mexerica, jabuticaba, pêssego, goiaba, laranja e outra dezena de ervas e folhas.

"A gente não tinha essa ideia de venda, a nossa ideia era plantar para cultivar. Como nós viemos da roça, plantamos mais com esse intuito de lembrar dos canteirinhos de casa, o cantinho da vovó, só que é bem grande", diz Elena.

"Sem feminismo, não há agroecologia"

2 - Arquivo pessoal/Joelma - Arquivo pessoal/Joelma
"A agroecologia defende a proibição de veneno na comida, o uso responsável da terra e preços acessíveis para que todos e todas possam comer.
Imagem: Arquivo pessoal/Joelma

A agroecologia é um campo de estudo com destaque nas décadas de 1970 e 1980 no Brasil. Diferente da agricultura tradicional, ela tem uma produção ecológica, sem uso de agrotóxicos e com manejo sustentável do solo.

Pelas características, a agroecologia é considerada um movimento social. Defende a proibição de veneno na comida, o uso responsável da terra e preços acessíveis para que todos e todas possam comer.

O lema das mulheres que atuam no campo sob a perspectiva da soberania alimentar é "sem feminismo não há agroecologia".

3 - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
'Não serei marionete na sua mão': Hortas ajudam vítimas violência doméstica - Joelma
Imagem: Arquivo Pessoal