Casal vira criador de búfalos sem querer e salva milhares de hectares no PR
O veterinário Clóvis Borges e a bióloga Mônica Rosa Borges estão à frente de uma ONG que preserva 19 mil hectares intactos de Mata Atlântica no Paraná desde o fim dos anos 90. As três reservas mantêm vivas centenas de animais ameaçados de extinção, assim como árvores e rios. É um trabalho ousado, que acidentalmente tornou Clóvis em criador de gado e gerou confusão no estado. Não sem motivo: as terras já tinham donos.
Nos anos 70, a ditadura militar estimulou o corte de madeira e a criação de búfalos em regiões de mata das cidades de Guaraqueçaba e Antonina. Nos anos seguintes, a paisagem esverdeada era lentamente cortada por estradas de terra, que do alto lembravam uma espinha de peixe. Não é um lugar fácil de chegar. Até hoje, as vias não têm asfalto. O isolamento de partes do terreno ajudava a preservar animais, embora estivessem cada vez mais encurralados pelos pastos bubalinos.
No final dos anos 90, a ONG Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem (SPVS), chefiada por Clóvis, conseguiu a aprovação de US$ 18 milhões (quase R$ 100 mi no câmbio atual) de empresas americanas para investir nessa região da Mata Atlântica pelos próximos 40 anos. A missão, porém, era fazer o oposto das décadas anteriores.
Em vez de produzir carne ou madeira, Clóvis teria que comprar as terras e conservá-las. Ou seja, deixá-las como eram antes da intervenção do homem branco. Aí, a situação "esquentou".
Quem paga a conta?
O dinheiro para comprar as terras foi doado pela American Electric Power, do setor de energia, da petrolífera Chevron-Texaco e da montadora General Motors. A intermediação foi feita pela ONG ambiental The Nature Conservancy, habilidosa em captar recursos de grandes empresas poluidoras no mundo. Todas as empresas são norte-americanas.
A Chevron, afirma Clóvis, enviou uma carta para a ONG em que reconheceria e sanaria as máculas ambientais deixadas pelo mundo. À época, a Texaco havia sido acusada de despejar bilhões de litros de água tóxica e mais de 60 milhões de litros de óleo no interior do Equador, o que aniquilou povos originários locais. (Os processos e acusações contra a empresa ainda continuam em Cortes equatorianas e pela América Latina).
O objetivo dos americanos era o mesmo: sair na frente uns dos outros. Segundo Clóvis, as companhias temiam ser obrigadas a tomarem grandes ações ambientais para cumprir tratados internacionais para a diminuição dos gases do efeito estufa, como o Protocolo de Kyoto.
Segundo Clóvis, a direção da ONG tomou uma decisão pragmática. Ou aceitava o dinheiro sob críticas dos colegas ambientalistas, ou perderia a chance de assumir um projeto de conservação em larga escala que salvaria centenas de espécies a longo prazo "E se o dinheiro for assumido por outra ONG sem interesse em ter resultado?", se perguntaram. O financiamento foi aceito. Mas o que fazer com os pastores de búfalos?
"Havia uma associação de criadores de búfalos que via a gente como inimigo", diz o ambientalista. Mônica foi responsável pela montanha burocrática e lembra de cada número: 137 documentos diferentes. Para compor 19 mil hectares, negociamos com 52 proprietários diferentes.
O dinheiro aprovado envolvia a compra da fazenda inteira, com tudo dentro, e os funcionários das fazendas foram convidados a trabalhar nas futuras reservas. Clóvis assumiu uma função que considerava inimaginável: se tornou dono de cabeças de gado.
Os búfalos comprados pela ONG foram pastoreados para regeneração das áreas verdes e deixaram de ser reproduzidos. O destino? "A gente doava para fazer um churrasco em Antonina", lembra Clóvis.
E agora?
Nos anos 80, quando conheceu a esposa Mônica, eles trabalhavam com amigos ambientalistas na observação de inofensivos passarinhos. Já suspeitavam, porém, que a conservação do meio ambiente era uma tarefa menos pacífica. Dali em diante, se quisessem seguir adiante, o caminho envolveria lidar com um Brasil ainda desconfiado com ONGs e com trabalho ambiental insuficiente para lidar com um território com tanta natureza.
"A gente falava que atuaria como ONG ambiental e batiam no nosso ombro. Perguntavam se a gente sabia o que estava fazendo. Era preciso ter muita energia e também cabeça dura para acreditar", lembra Mônica.
Clóvis, que tem uma aparência calma e paciente como a de um professor de ciências, na verdade é combativo em artigos com críticas a governadores paranaenses das últimas décadas. "Vivemos uma política ambiental mínima vinda do século passado", diz.
No início dos anos 2000, o ceticismo contra ONGs era alimentado pela classe política no Brasil e no mundo. Nos Estados Unidos, até mesmo a Nature Conservancy, aliada da SPVS, era alvo de investigações da imprensa. No Brasil, parlamentares convocaram a CPI das ONGs para investigar instituições do terceiro setor que atuavam na Amazônia, mas o relatório se estendeu para atuação em outros biomas nacionais, como a Mata Atlântica.
O então deputado estadual do Paraná Neivo Beraldin afirmou que a SPVS de Clóvis, junto com a Fundação Grupo Boticário, estavam criando uma "imobiliária dos Estados Unidos" no Brasil para dominar o território nacional.
Por outro lado, deputados federais apresentaram um documento do Ministério Público que não apontava irregularidades contra as contas da ONG. Mesmo assim, o estrago estava feito.
Por dois anos, Clóvis foi a Brasília esclarecer os objetivos, os valores, os elos com órgãos ambientais nacionais e especialmente sobre as financiadoras americanas na compra de terras.
Segundo ele, uma terra comprada para ser conservada, onde não se produz agropecuária, não é bem aceito. "Compre uma terra para produzir soja, e ninguém vai falar nada. Compre uma terra para conservar, e todo mundo vai para cima de você como abelha no mel", defende-se. "Foi um preço político alto, um trauma jurídico e financeiro", diz. O trabalho, porém, continuou.
Hoje, a instituição SOS Mata Atlântica afirma que apenas 12% da Mata Atlântica original ainda está preservada. Entre 2018 e 2019, foram 14,5 mil hectares a menos e o Paraná é o segundo que mais desmatou o bioma, com 2.767 hectares a menos em apenas um ano.
Em um das reservas com mais de 8 mil hectares, a SPVS estimou 860 espécies botânicas e 467 animais. Mais de 70 espécies de árvores nativas foram plantadas em em 1500 hectares para testar a técnica de reflorestamento, afirma relatório da própria ONG, e imagens de satélite mostram um pasto que muda de desértico para verde em 20 anos.
Cerca de 60% das propriedades da ONG são RPPNs, as chamadas reservas particulares. Assim, elas geram renda para os municípios por meio do chamado ICMS Ecológico. O imposto pago no setor de serviços no Paraná garantiu R$ 5 milhões de para Guaraqueçaba e Antonina apenas em 2018. A área também será aberta para turismo.
"A produção de natureza é um substrato para o desenvolvimento. Ou seja, os ecossistemas são base para uma economia restaurativa que, por sua vez, gera emprego e renda para os últimos diamantes de natureza que ainda sobram no país", conclui.
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