Topo

Educadora ouviu sobre mortes por violência para ajudar mães em luto: "paz"

Elisângela Maranhão, que promove terapia em grupo de mães, avós e parentes de quem perdeu filhos e filhas para a violência urbana - Arquivo pessoal
Elisângela Maranhão, que promove terapia em grupo de mães, avós e parentes de quem perdeu filhos e filhas para a violência urbana Imagem: Arquivo pessoal

Marcos Candido

De Ecoa, em São Paulo (SP)

16/06/2021 06h00

Um grupo de mulheres está reunido em um círculo formado por cadeiras. Uma delas é novata e, por este motivo, tem o tempo que quiser para desabafar. Ela diz o que estava entalado na garganta e as mulheres ouvem e entendem cada palavra. Assim como elas, todas são mães com filhos mortos pela violência em Peixinhos, bairro empobrecido entre Olinda e Recife. Entre as mães que perderam os filhos, uma mulher acompanha a reunião de forma atenta.

Ela é Elisângela Maranhão, mais conhecida como Anjinha, uma das primeiras educadoras a coordenar o "Mães da Saudade de Peixinhos". O grupo foi criado para formar uma rede de apoio, doar alimentos, oferecer ajuda psicológica individual e em grupos e, também, ensinar para as mães em luto no bairro que as mortes de seus filhos são violações de direitos humanos e é preciso lutar por justiça e solidariedade.

As reuniões são parte do programa desenvolvido por ela. Nesta etapa, as mães falam sobre as melhores qualidades do filho que se foi. Em outras reuniões, debatem e aprendem sobre justiça, direitos humanos, ou compartilham sentimentos a partir de temas como a saudade e a alegria.

Uma nova integrante do grupo, mais fragilizada, é incentivada a falar sobre o que está sentido. Ao fim da fala, é aconselhada pelas outras mães. As reuniões podem tomar o dia inteiro. No luto, os sentimentos se misturam e se alternam. Mas no fim, costumam dizer: "Eu pensei que nunca falaria sobre o que eu sinto em voz alta".

Ao ouvir frases como essa, Elisângela sente alívio.

Ela se envolveu com trabalho comunitário há trinta anos, quando herdou da mãe a vontade de ajudar o espaço onde vivia e a também a participar da ONG "Grupo Comunidade Assumindo suas Crianças" (GCASC). Com os anos de trabalho, ela percebeu que as famílias ajudadas tinham uma característica comum: a violência. "Entendi que a minha vida não pertence somente a mim, mas a elas".

Conhecendo quem se foi

Em 2011, Elisângela quis conhecer e ajudar os familiares que sofriam calados com a violência. O maior desejo era mudar a percepção e dar a devida dimensão do que acontecia no bairro."Eu pensei: o que leva uma comunidade a sair de casa correndo para a rua, às vezes com comida no fogão, só para julgar um corpo estendido no chão? Como se aquela vítima tivesse "aprontado" para merecer aquele fim", diz. "Ao contrário, por que a gente não se organiza para lutar pelos nossos direitos e para ter sensibilidade, para entender que uma mãe havia perdido um filho?"

Ela apresentou a ideia para instituições que financiam projetos sociais, mas nem todos pareciam entendê-los e tinham dúvidas se seria possível convencer os familiares a tocar um assunto que causa medo, constrangimento e silêncio. Uma instituição da Suíça decidiu patrocinar o projeto batizado com "Mães da saudade". O primeiro grupo de "Mães da saudade" foi composto por cerca de trinta mulheres que já eram conhecidas pela ONG GCASC. Hoje, são 65.

Em 2014, jovens da ONG Comunidade saíram pelas ruas de Peixinho com um questionário para entrevistá-las, mapear onde moravam, encontrar características comuns nas histórias e unir dados sobre escolaridade, idade, grau de parentesco com a vítima, etc. As perguntas formuladas por Elisângela também as ajudavam a transformar "luto em luta", como costuma dizer.

A tática para ampliar o mapeamento foi a chamada "bola de neve": uma entrevistada indicava uma conhecida no bairro que também perdeu um filho ou filha para a violência. "Nós tínhamos um vínculo afetivo com as mães pelo nosso trabalho na comunidade", diz.

Das 242 pessoas entrevistadas à época, 126 afirmaram ter perdido alguém da família, ou 52,1% das pessoas visitadas declararam que algum membro de sua família sofreu homicídio. Ao responderem quais membros da família sofreram assassinato, o número chegou a 172, o que significa que mais de um membro da família foi assassinado em muitas casas. O recrutamento de jovens da própria comunidade para as visitas e entrevistas foi um meio de convencê-las a partilhar. Os relatos se referem a pessoas jovens, com idades entre 15 e 22 anos.

Em 2015, cinco mães do grupo apresentaram uma placa com o nome das vítimas de Peixinhos em uma comissão sobre direitos humanos na câmara estadual em Recife. À época, o governo se orgulhava de uma política de segurança que havia, estatisticamente, diminuído os números da violência em Pernambuco.

Na ocasião, um dos deputados teria dito que ali estava o nome de "vários bandidos". A fala dos deputados não desmotivou as mães. Os relatos coletados na pesquisa viraram um livro e foram usados em escolas na região para o ensino sobre direitos humanos. "A gente faz um trabalho para fortalecer os meninos em vida", diz.

O luto pandêmico

Durante a pandemia, Elisângela afirma que mães foram ajudadas com cestas básicas e receberam o "Correio do Afeto", mensagens positivas enviadas por WhatsApp. Uma música, uma frase motivacional e uma palavra de apoio é enviada para as mães seguirem em frente e com a cabeça erguida.

Durante a pandemia, o grupo Mães da Saudade ajuda mães de grupos prioritários a irem a um posto para se vacinar contra a covid-19, doa kits de higiene, entrega cestas básicas ou cumpre a missão dura de organizar velórios. A ONG Comunidade, responsável pelo grupo, recebe doações para manter a ajuda. (Saiba como ajudar abaixo)

Quando caminha pelas ruas do bairro onde se dedica a transformar, sente frustração, indignação, mas também resistência. Em uma das oficinas, as mães foram levadas para a praia. Em outra, fizeram uma oficina, quando riram por horas. "É exaustivo, mas a gente não pode desistir", diz. "Precisamos liberar emocionalmente essas mães. Além disso, precisamos reforçar que as mortes precisam acabar e que precisamos de uma cultura de paz".

Para doação de dinheiro, acesse o site do Gcasc
Para doação de Alimentos ou matérias físicos:
Telefone: (81) 3241-0052
Email: gcasc1@yahoo.com.br