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"Raça não é mãe do racismo, ela é filha dele", explica Lia Vainer Schucman

Thaís Regina

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

28/10/2020 11h09

"Eu sou discípula de um filósofo afro americano chamado Charles Mills que cunhou a teoria do contrato racial, que é o tronco retórico do contrato social da teoria política", conta a filósofa, autora e doutora em educação, Sueli Carneiro, "Ele busca demonstrar que existe no mundo um contrato racial em vigor que está em vários eventos históricos, desencadeados pelo colonialismo e imperialismo sobre África e Ásia; a partir desse contrato, os brancos emergem como donos do mundo. O contrato racial é não nomeado e define o estado de brancos e não brancos. Essa eleição da branquitude como parâmetro da sociedade institui sub-humanidades e sub-cidadanias, o poder imperial da branquitude. Todas as pessoas brancas são beneficiárias, mas nem todas são signatárias: então, reside diálogo, possibilidade de consenso no reconhecimento de que nem todas as pessoas brancas são signatárias ou se sintam confortáveis dentro desse sistema injusto."

Na segunda mesa do encontro "Branquitude, racismo e antirracismo", proposto pelo Instituto Ibirapitanga e transmitido por Ecoa, Sueli Carneiro e Lia Vainer Schucman foram convidadas para conversar sobre "Alianças possíveis e impossíveis entre brancos e negros para equidade racial". A mediação bem-humorada da artista textual Ana Paula Lisboa contribuiu para enriquecer a mesa. Logo depois da fala esperançosa de Carneiro, descrita acima, sobre pessoas brancas não signatárias, ou seja, possivelmente antirracistas, Ana Paula provocou: então, por que não há um grupo de brancos antirracistas no Brasil?

Lia Schucman, que é e cocuradora do evento, apontou dois motivos principais. Primeiro, são poucos não signatários no Brasil. Os brancos brasileiros não se consideram racistas — ou por causa da ideia de democracia racial, cuja teoria é fundamentalmente racista, ou por reconhecer o racismo estrutural, que Lia chama de "máquina de gerar desigualdades", e buscar excluir-se dele. Para ter um movimento branco antirracista é preciso se considerar racista; é fundamental enxergar seu lugar de poder e privilégio para movimentar-se contra ele.

Segundo, existe uma estranheza particular no escopo da coisa. "Um movimento antirracista de brancos é estranho porque toda vez que o branco se uniu foi pela supremacia branca: as pessoas não sabem muito como fazer isso; mas acredito que está na hora de termos um grupo assim, que quer ir na frente da polícia na hora da manifestação", propõe a professora e doutora em psicologia social.

Além de investigar a construção da branquitude em "Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo", Schucman dedicou-se a entender como se dão as negociações de raça dentro dos núcleos familiares, uma vez que 38% das relações afetivas entre classes mais pobres são interraciais. Deparou-se com o racismo de intimidade, cuja operação detalha em seu livro "Famílias Inter-raciais, estudo psicossocial das hierarquias raciais em dinâmicas familiares".

Na transmissão, Lia compartilhou histórias dolorosas, nas quais a "branquitude aparece como lugar de posse simbólica, em muitas trocas afetivas a raça entra e se configura; a negação do negro é comum em muitas histórias familiares, 'Eu casei com um negro diferente' — logo, retira-se o sujeito do grupo para se manter os estereótipos sobre o grupo." Houve uma história de esperança que a professora trouxe, em que uma mãe branca passa por uma compreensão do racismo e se coloca em movimento contrário. A conclusão é objetiva: mais que amor, afeto e carinho, a aliança possível reside na consciência racial.

Esse racismo de intimidade opera incessantemente. Lia comenta sobre a antítese de pais e mães brancos que pressionam as escolas para que se tornem antirracistas em seus currículos, mas não querem abrir mão da empregada doméstica em suas casas — o que, fatalmente, contribui para a construção do cenário do racismo no imaginário infantil. Ainda dentro das próprias escolas, é preciso ser antirracista tanto no conteúdo estudantil, mas também na estrutura. Ao ter professores brancos e faxineiras negras, às quais as crianças nem são apresentadas, aprende-se que existem pessoas que importam, e elas ocupam profissões relevantes, e também pessoas cujas vidas não importam, em profissões subalternas.

E o que o branco antirracista pode fazer?

Carneiro declara que, uma vez que sai da inércia da negação do racismo, a primeira tarefa é chamar os brancos à responsabilidade em relação ao que o racismo produz na sociedade: discutir com os seus, confrontar os seus. "A desconstrução de todo imaginário racista, de um país que esconde a violência colonial é uma tarefa de educadores e jornalistas. As ideias de Lombroso influenciaram fortemente a criminologia brasileira, essa convicção íntima de culpa do homem negro, sendo a negritude a matéria a punir, o que produz esses níveis inacreditáveis de encarceramento — logo, um juiz antirracista tem um trabalho enorme para fazer", aponta a filósofa e doutora em educação.

Questionada sobre o debate de colorismo no Brasil, Schucman reitera que a raça é uma ficção. No começo da conversa, a doutora em psicologia social declara que a branquitude afeta tanto colonizados quanto colonizadores, a única diferença do Brasil é quem é considerado branco. Por exemplo, árabes e judeus não são brancos na Europa, mas no Brasil são. Vale pontuar também que a ideia de raça hierarquiza os próprios brancos, afinal, por trás do fenótipo, está a origem. No Brasil, o branco que não tem ideia da sua origem — o branco da mistura — tem a ver com histórias e lugares de poder, o que pode mudar dependendo de onde você está.

Nas pesquisas nacionais, o pardo tem uma vida, condição social muito similar ao preto. A grande sacada do Movimento Negro Unificado da década de 1970 foi reivindicar essa população, resultado de uma política de embranquecimento. "Não é que o pardo é exceção, todas as raças são invenções. Só existe ficção racial, todas as identidades raciais são ficções. Raça é advinda das relações de poder; raça não é mãe do racismo, ela é filha dele", explica Schucman.

A monstrificação do branco

"Peles Negras, Máscaras Brancas" é uma leitura indispensável. Frantz Fanon não é fácil, mas é dilacerante em sua precisão. Um exercício de ver-se e ver o outro em uma estrutura engenhosa, antiga e voraz. Ontem, possivelmente a mesa mais fanoniana de "Branquitude, racismo e antirracismo" aconteceu. Autor do livro "Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro", Deivison Faustino encontrou o mestre em sociologia e doutor em ciências sociais Lourenço Cardoso para discutir "O protagonismo negro no desvelar da branquitude", com a mediação da historiadora Luciana Brito.

"Fanon trouxe reflexões muito originais. Segundo ele, a branquitude é fruto legítimo do colonialismo, negro é o filho bastardo desse processo", declara o mestre em ciência da saúde e doutor em sociologia. Deivison explica que no século 16, enquanto o Iluminismo se desvelou, logo nascia a condição do homem enquanto sujeito da razão, aconteciam as invasões, massacres e escravização de outros povos. Para fazer valer os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, a grande saída europeia é criar uma cisão na visão de humanidade. "Na minha experiência, o pesquisador negro que estuda branquitude, a partir de um olhar de fora, consegue ter uma compreensão melhor sobre o que é ser negro porque o branco é uma construção de si a partir da construção do outro", diz Lourenço Cardoso, "Trata-se de uma lógica ocidental de contraste e hierarquia: eu me faço superior na medida em que te faço inferior."

Tanto na academia quando na cultura pop, Deivison pontua ainda que a lógica colonial não deixa de operar. Quando a cultura negra se torna a cultura popular do mundo é porque o momento filosófico pede que o homem se reconecte com seu passado e com a natureza. Para o branco, seu passado, sua ideia de retrocesso está transferida no negro. É nesse momento que se começa a ver o branco que sobe o morro para ouvir samba, apropria-se do rap. No âmbito da antropologia é mais óbvio: quantas teses você já viu sobre professores universitários ou juízes? Como a antropologia é sobre o outro, ela se dirige ao homem negro, à mulher negra, aos povos originários — a branquitude é sujeito, o negro objeto.

Logo, o eurocentrismo existe na relação de exclusão do outro, ou melhor, na transferência de contradições sociais para o outro. Assim, para que o branco signifique o bom, o negro é o mau, para que o branco seja o belo, o negro tem que ser o feio e, para que o branco seja o verdadeiro, negro é o falso. Segundo Faustino, "o debate da branquitude é a possibilidade de pensar uma humanidade de novo."

A partir do momento em que o negro não é visto como sujeito, a violência contra o negro não é vista como violência. Uma das consequências mais objetivas do racismo é então a monstrificação do branco. Isso explica, por exemplo, como o exibicionismo do racismo de Trump ou Bolsonaro consegue se tornar uma alavanca política, em vez de um freio. "Esse menino que recebeu uma pessoa escravizada como presente no passado vai ser juiz, vai ser médico, vai ser o presidente que não liga para a contaminação do coronavírus no próprio país", provoca Faustino.

Conversas de reticências

Para não impor o ponto final. Hoje (28) é o dia de encerramento da imersão sobre a pauta racial do Ibirapitanga, que contará com duas conversas. Às 16h, a professora Liv Sovik encontra a autora Nic Stone com a mediação do jornalista Tiago Rogero para falar sobre "O papel da comunicação no antirracismo". Já às 18h, a grande pergunta é "O que podem os indivíduos diante da estrutura?", troca que contará com a médica e doutora em comunicação e cultura Jurema Werneck, a doutora em direito Thula Pires e mediação da jornalista, autora e colunista da Ecoa, Bianca Santana.

O encontro "Branquitude, racismo e antirracismo" é promovido pelo Instituto Ibirapitanga, o qual é uma iniciativa do cineasta Walter Salles e tem sua atuação desde 2017 nos campos de equidade racial e sistemas alimentares. Com transmissões ao vivo pelo Youtube e por Ecoa, o objetivo é fortalecer a democracia brasileira, promovendo reflexões profundas sobre as estruturas vigentes e os caminhos possíveis para um cenário futuro de pós-racismo.