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Por que é necessário falar de raça dentro da luta anticapacitista?

Luciana Viegas é professora de educação básica, ativista e integrante da Abraça (Associação Brasileira para Ação por Direitos da Pessoa Autista) - Arquivo pessoal
Luciana Viegas é professora de educação básica, ativista e integrante da Abraça (Associação Brasileira para Ação por Direitos da Pessoa Autista) Imagem: Arquivo pessoal

Kamille Viola

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

10/10/2020 04h00

Com a disseminação do debate sobre o racismo estrutural no país, desde os assassinatos em maio de João Pedro no Rio de Janeiro e de George Floyd nos Estados Unidos, cresceu no Brasil o movimento Vidas Negras Importam, inspirado pelos norte-americanos, e com ele a importância de se atentar para o recorte racial em diferentes esferas.

Nesse rastro, surgiu o Vidas Negras com Deficiência Importam, movimento para chamar atenção às especificidades da discriminação e violências sofridas por este recorte da população. Ativista e integrante da Abraça (Associação Brasileira para Ação por Direitos da Pessoa Autista), a professora de educação básica Luciana Viegas é uma das idealizadoras do movimento no Brasil, inspirado por ação similar nos EUA.

Ela conta que teve um estalo sobre a importância da causa quando soube da história de um jovem surdo e com deficiência intelectual que foi morto pela polícia ao ser confundido com um bandido - ela se refere a Douglas Peçanha e Silva, 29, que foi assassinado em 28 de janeiro no Rio. "No nosso país, ser mãe preta é desesperador, porque ele é estruturalmente racista", diz.

"Eu já pensava sobre isso, porque o Luiz, meu filho, é autista. Ele foi diagnosticado com um ano e nove meses, hoje tem três anos. Nesse caso específico [de Douglas], ele foi pego pela polícia e estava tentando se comunicar. Era um garoto surdo, que, por ser negro, a população entendeu que era suspeito, chamou a polícia e ele morreu, quando na verdade só queria falar. Isso me pegou. Quando a gente pensa, a importância desse debate é salvar vidas", comenta ela.

Como seu filho é autista não verbal, ela ensina para ele como reagir a comandos básicos da polícia (como "levanta a mão") por ter medo da violência policial.

Luciana está feliz com a repercussão das demandas da luta negra no Brasil, mas sente falta da inclusão de pessoas negras com deficiência. "Não vi ninguém falando sobre a luta dessa mãe preta [Ana Cláudia, mãe de Douglas, que luta para provar a inocência do filho], que sabe que o menino dela morreu por ser um preto com deficiência. Se ele fosse branco, tenho certeza de que não seria visto como suspeito. Então, quando a gente fala em racismo e capacitismo, está falando da importância de se debater isso, porque, muitas vezes, não somos contabilizados, estamos num não lugar. Nós não existimos, nem para o movimento negro, quando ele não acolhe na nossa pauta, nem para o movimento das pessoas com deficiência, quando vemos que a representatividade é majoritariamente de pessoas brancas", pontua ela.

Psicólogo e doutor em psicologia social, Carlos Vinícius Gomes Melo se deparou com o tema quando foi pesquisar a abordagem das questões étnico-raciais na psicologia. Ele participava de um grupo que investigava o serviço dos profissionais de psicologia quando começou a avaliar um centro de educação voltado para pessoas com deficiência intelectual ou superdotação. Quis entender como o tema das relações raciais era abordado no local — e descobriu que ele simplesmente não era levado em conta.

"A instituição trabalhava com 100% de pessoas com deficiência intelectual e, em Salvador, onde 80% da população é negra. Era um serviço público em uma instituição de educação especial, ou seja, de 90 a 100% da população [atendida] ali negra. Só que ninguém, de acho que 17 profissionais de psicologia, trabalhava com esse recorte. Fiquei intrigado com aquilo, porque a negação, enquanto um achado de pesquisa, é um dado interessante", explica ele. "Fui, então, investigar qual era a dificuldade: enxergar ou compreender de forma total, igualitária, detentora de direitos essas pessoas com deficiência e ao mesmo tempo negras", diz.

Ele foi, então, pesquisar como pessoas negras e com deficiência são percebidas pela sociedade e quais as estratégias de enfrentamento utilizadas por elas para lidar com o racismo e o capacitismo. O assunto foi abordado por ele em seu TCC, em uma publicação em um programa de iniciação científica e em seu mestrado na UFBA (Universidade Federal da Bahia). "O que a gente percebe é que as ideias sobre eles são bem díspares, a depender do recorte identitário. Como pessoa negra, vão ter determinados atributos que são associados, enquanto como pessoas com deficiência vão ser outros. A pessoa negra está associada ao estereótipo de marginalidade, de criminalidade, de primitividade, algo muito relacionado ao corpo, como se fosse essa pulsão corporal incontrolada, animalizada, que se expressa totalmente sem ordem. Já a deficiência está ligada à ideia do coitado, do incapaz, à piedade, ao excesso de cuidado que precisa se ter com alguém", exemplifica.

O racismo, muitas vezes, pode dificultar até um diagnóstico correto de algum transtorno ou deficiência intelectual. "A população negra, de um modo geral, sempre vai ter um índice muito maior de erro de diagnóstico ou de falta de diagnóstico, pela inassistência, pelo baixo acesso aos serviços de saúde, e agora ainda mais, com a retenção dos custos no plano da saúde e a precarização do SUS (Sistema Único de Saúde)", observa Carlos Vinicius.

Ele aponta ainda uma dificuldade adicional para pessoas com TDAH (Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade) ou autismo, que são entendidos como transtornos do neurodesenvolvimento, segundo o CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde). "São diagnósticos muito mais elaborados. Sempre vai ter o estereótipo ali fazendo a primeira clivagem de julgamento. E aí vai para aquela animalidade, dentro do aspecto da negritude, essa animalidade que é incontrolada, que é marginal, que é criminalizada desde muito cedo", explica o psicólogo.

Luciana Viegas conta que ela própria é um exemplo dessa dificuldade para pessoas negras com deficiência. Ela já havia sido diagnosticada com ansiedade, depressão, bipolaridade, TAG (Transtorno de ansiedade generalizada). A professora diz que, mesmo medicada, seguia tendo crises de enxaqueca e sensoriais. Há três anos, o clínico geral que a atendia disse que ela poderia ser autista, e a encaminhou para um neurologista. A médica que a atendeu logo descartou a possibilidade: "Você não é autista, você é casada", disse. No início deste ano, mais uma vez o clínico insistiu para que ela passasse por uma avaliação neuropsicológica, dessa vez, particular, já que no SUS sempre descartavam a possibilidade do Transtorno do Espectro Autista. Resolveu, então, estudar sobre o assunto e se autodiagnosticou.

Na busca por outras mulheres negras autistas nas redes sociais, descobriu algo em comum.

"E aí o que eu encontrava? Todas as mulheres que são autodiagnosticadas — porque geralmente são —, quando vão para o médico sofrem atravessamentos absurdos. Muitos deles são racistas — a gente sabe que a nossa sociedade estruturalmente é racista —, tratam a gente com um olhar bem enviesado", observa. "Se, por um lado, a mulher branca com deficiência é tida como a coitada, a que não é dona do seu corpo — isso é horrível, eu não estou falando que isso é melhor que o atravessamento que eu enquanto mulher negra passo. É horrível, por isso a luta precisa ser junta", compara.

Apesar das dificuldades, Luciana acredita que a discussão já avançou e encontrou acolhimento tanto na luta antirracista quanto na anticapacitista. "Quando você fala sobre esses debates dentro do movimento negro, 'Nunca se perguntou onde estão os pretos com deficiência?', você vê aquela cara de surpresa: 'Caraca, a gente precisa se aliar a essa luta.' São muito aliados, começaram a propagar a mensagem mesmo, passaram a pautar acessibilidade dentro dos debates. Obviamente, isso é recente. Mas existem pessoas negras inclusive que não têm deficiência e que estão dentro do Vidas Negras com Deficiência Importam porque entendem a necessidade e a potência que é um movimento desses no nosso país, que é estruturalmente racista", explica.

"A gente tem pessoas com deficiência brancas dentro do Vidas Negras com Deficiência Importam, porque a gente está falando sobre pessoas que estão em urgência, que estão vivendo em situações de violência. E isso é muito bonito, isso me emociona. Tenho percebido que a gente está começando um caminho que é longo, mas que é muito bonito e é coletivo", finaliza a ativista.