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Não é só estátua! Marcas tentam livrar seus produtos de histórico racista

René Cardillo/UOL
Imagem: René Cardillo/UOL

Marcos Candido

De Ecoa, em São Paulo

17/07/2020 04h00

Ter mais negras e negros em cargos decisórios dentro de agências de publicidade, programas de diversidade bem planejados nas empresas, além de brancos sensíveis a temas raciais são caminhos traçados por profissionais ouvidos por Ecoa para transformar um cenário conhecido — e que, após anos de pressão popular e de ativistas, começa a dar sinais de mudança: o de campanhas, nomes de marcas e produtos que propagam estereótipos racistas.

"É urgente que as empresas busquem talentos pretos para ocupar cargos de gerência e decisórios. É fundamental que existam programas consistentes dentro das agências, dos veículos e dos anunciantes, com projetos que contemplem as relações étnico-raciais para garantir uma abordagem antirracista", diz Maria Amália Cursino.

Comunicóloga, Maria Amália é cofundadora, diretora executiva e de conteúdo do Coletivo Pretaria, além de pesquisadora em relações étnico-raciais. Para ela, a educação antirracista deve ser central desde o ensino fundamental, como forma de romper com o mito da democracia racial, valorizar a cultura afro-brasileira e a diversidade. Dessa forma, práticas racistas seriam exceção, não regra.

Maria Amalia Cursino, do coletivo Pretarias, defende inclusão de pretos em tomadas de decisão - Reprodução - Reprodução
Maria Amália Cursino defende inclusão de pretos em tomadas de decisão
Imagem: Reprodução

"Trabalhei durante 17 anos em agências de comunicação. Sempre criava para um consumidor branco. A aprovação dos trabalhos passava por mãos brancas, que realmente não conhecem ou reconhecem o Brasil de fato", diz Cursino.

Até o fim de julho, a fotografia de uma mulher negra e escravizada no Brasil ilustrava o rótulo de uma cerveja artesanal produzida em São Paulo e vendida em todo o país. A embalagem foi comercializada por cinco anos em supermercados até ser criticada nas redes sociais. A cervejaria Dogma retirou a Cafuza do catálogo, desculpou-se e comprometeu-se a inserir pessoas pretas no negócio.

A cervejaria não foi a única. Empresas no mundo estão revendo produtos com imagens ou termos racistas criados no passado como uma espécie de "homenagem" à mestiçagem ou com estereótipos preconceituosos. Em meio às mensagens, uma pergunta costuma aparecer: como a ideia de uma publicidade racista foi para frente sem ser questionada?

Em um contexto de movimentações antirracistas pelo mundo, o tradicional time de futebol-americano Redskins vai mudar o nome e o brasão racistas após pressão de movimentos nativo-americanos — em português, o termo significa "pele vermelha". O mesmo aconteceu com a marca norte-americana Aunt Jemina (Tia Jemina), inspirada em uma mulher escravizada. Em junho, a Bombril também retirou uma linha tradicional de lã de aço chamada "Krespinha" do mercado. O produto estava em circulação desde 1950. Na época, relacionava a esponja com o cabelo crespo.

Já a cerveja Cafuza recebeu o nome por ser resultado de uma mistura de ingredientes — com teor alcoólico de 9,2%. O artigo de uma revista especializada, publicado em 2017, ressaltou que o termo completo era "Cafuza Imperial India Black Ale" e "reflete a miscigenação brasileira em sua receita, assim como os cafuzos resultaram da mistura entre índios e negros". A receita era um dos carros-chefe da cervejaria Dogma.

O sócio fundador da empresa, Bruno Moreno, encontrou a arte da Cafuza após buscar o termo no Google. A imagem ilustra um artigo sobre o termo cafuzo na Wikipedia. Por trás da ilustração está uma fotografia real, em domínio público, de uma mulher escravizada e sem nome registrado, em 1869 em Pernambuco. O retrato é de autoria de Alberto Henschel.

Bruno não é publicitário, mas pegou gosto em fazer cerveja ainda na faculdade de medicina. Como médico, lembra-se de não estudar com pessoas negras ou sequer debater questões raciais. No ensino médio, a miscigenação também lhe foi ensinada como um ponto positivo para a formação da identidade brasileira. A ideia de usar a mulher negra também era evitar a circulação de mais uma cerveja ilustrada com uma mulher hipersexualizada.

A receita foi elogiada pela crítica especializada. O alerta sobre o rótulo só foi acionado entre consumidores assíduos e a equipe da Dogma após artistas e sommeliers expressarem incômodo.

A sommelier negra Sara Araújo foi ouvida pela cervejaria após o caso e classifica a Cafuza como "extremamente problemática" por relacionar o mito da "mulher forte", muito associado à mulher negra, com o teor alcoólico. Ou seja, a ideia de que se trata de alguém com uma resiliência natural para suportar grandes fardos que, na verdade, foram impostos violentamente. Outro incômodo foi a junção dos termos "imperial" a "negro" e "indígena", populações mortas pela colonização. "Trazer uma figura como essa e sem contexto — eu não consigo ver homenagem nisso", diz ela.

Bruno conta que, na escola, aprendeu apenas sobre a exploração de força de trabalho no período escravocrata e não se aprofundou em questões trazidas pela sommelier, como a cultura do estupro contra escravizadas. Os sócios da Dogma, que são brancos, pretendem contratar pessoas pretas para formar o pequeno quadro de cinco funcionários da cervejaria.

"Essa cerveja ficou tanto tempo à venda e quem trouxe a discussão não é do mercado cervejeiro. Isso mostra que, nesse ambiente, essa questão não é discutida nem tem representação como deveria ter", diz ele. "Eu, dentro da minha capacidade, posso mudar o lugar em que estou inserido, que é o mercado de cerveja artesanal, formando pessoas pretas."

Não é só estátua! Marcas tentam livrar seus produtos de histórico racista - René Cardillo/UOL - René Cardillo/UOL
Imagem: René Cardillo/UOL

Representação adequada

A publicitária Beatriz Oliveira, 20, mudou-se há dois anos da Bahia para trabalhar em um dos programas de diversidade em uma importante agência em São Paulo. A empresa pretendia enviar uma piñata a uma artista negra — o objeto seria uma reprodução da própria artista. Ou seja, seria preciso surrar a imagem para extrair os brindes.

Preocupada com a ideia, Oliveira levou dados para argumentar que poderia cair mal. "A criação me ouviu e cancelou o projeto, mas a diretora de outra área gritou: 'esse povo problematiza tudo! Eu iria amar ter uma piñata minha'", relembra. O projeto tinha um tempo limitado, mas dava chance de promoção aos participantes.

Assim que foi descontinuado, a publicitária, que mora em uma comunidade na capital paulista, foi demitida. Apesar de ter rendido algumas amizades e aberto portas para outras áreas, o projeto em si não animava toda a equipe e a frustrou na área. "Foram dias muito pesados para mim. Foi um processo muito difícil e complicado, e eu desisti da área de criação", conta.

Para a pesquisadora Maria Amália Cursino, é preciso ir além da inserção de negras e negros nas agências: há que se rever as culturas organizacionais, partindo para a criação de programas de diversidade bem desenhados para a contratação, manutenção e valorização de profissionais pretas e pretos.

Nos últimos anos, empresas desenvolveram projetos internos para evitar a continuidade ou a propagação de campanhas e produtos com mensagens preconceituosas, a partir de uma perspectiva diferente, já que esses são lugares historicamente ocupados por pessoas brancas.

O mercado também começou a se importar com a estatística que 55% da população do País é negra e de que consciência racial aumenta entre brasileiros. De acordo com o mesmo IBGE, entre 2012 e 2018 houve mais de 30% de crescimento entre os que se identificam como pretos. Uma estimativa do Instituto Locomotiva calcula que o consumo da população negra do Brasil movimenta R$ 1 trilhão ao ano.

Renata Hilario, publicitária e mestre em comportamento do consumidor e inteligência de mercado pela ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), interveio em uma marca que distinguia campanhas com modelos brancas e negras. "[A mulher negra era] favelada, que tem que ser forte sempre, aguenta tudo com muita luta e suor. Já as mulheres brancas, para esta marca, eram tratadas como realezas, um toque sublime, correndo nos campos com seus vestidos longos, quase um sonho", relembra.

Para ela, ter propagandas e campanhas que retratem de forma adequada o povo do país para o qual as marcas criam é básico. "Isso por si só já deveria ser considerado na estratégia de qualquer negócio, ou seja, representar devidamente seus consumidores", resume.