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Planejamento do Carnaval vira mutirão de solidariedade em escolas de samba

Live uniu seis grandes escolas de samba do Rio e arrecadou 60 toneladas de alimentos  - Eduardo Hollanda / Divulgação
Live uniu seis grandes escolas de samba do Rio e arrecadou 60 toneladas de alimentos Imagem: Eduardo Hollanda / Divulgação

Lívia Gonçalves

Do Alma Preta, colaboração para Ecoa

04/07/2020 04h00

Os ateliês de fantasias deram lugar para as confecções de máscaras de proteção. O espaço de ensaio e muito samba passou a receber cestas básicas e o intérprete oficial, acostumado ao calor de sua comunidade, no momento utiliza sua voz para arrecadar alimentos via QR code em diferentes lives. Esse cenário se repete em muitas escolas de samba do eixo Rio-São Paulo, e o que era para ser fase de planejamento para o Carnaval 2021 se transformou em mutirão de solidariedade.

No começo do isolamento social em São Paulo, iniciado em março, a Unidos de Vila Maria convocou uma força-tarefa com a participação de membros da escola para confeccionar máscaras de proteção. "Fizemos 300 mil máscaras e, em parceria com a Secretaria Municipal da Saúde, distribuímos em postos de saúde, hospitais e comunidades vulneráveis no entorno da quadra", conta Cassiano Franco Júnior, diretor de comunicação da escola.

Com atuação há 19 anos no distrito na zona norte da cidade, a agremiação também se mobiliza para prestar ajuda a mulheres em situação de violência doméstica durante a pandemia. Levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrou que o número de ocorrências dessa natureza registrou um aumento de 44,9% no estado de São Paulo desde que a quarentena começou. "Já atendemos mais de 30 casos na comunidade", informa a assessoria da agremiação.

A Liga das Escolas de Samba de São Paulo, entidade que organiza e estrutura o carnaval do grupo especial, acesso I e II, promoveu uma live solidária com a participação de 21 escolas. Segundo informações publicadas no site oficial da organização, foram arrecadadas cinco toneladas de alimentos durante a apresentação.

As cestas básicas foram doadas para os moradores de uma área conhecida como "Cingapura Zaki Narchi", na zona norte da cidade. Nessa região moram aproximadamente 1.100 famílias, divididas em diferentes blocos de apartamentos, fruto de um programa habitacional inaugurado na década de 1990.

Entrega de cestas básicas no Camisa Verde e Branco - Pedro Borges/Alma Preta - Pedro Borges/Alma Preta
Entrega de cestas básicas no Camisa Verde e Branco, em São Paulo
Imagem: Pedro Borges/Alma Preta

A Brasilândia, também na zona norte de São Paulo, é um dos distritos mais atingidos pela Covid-19 no país. De acordo com os dados da Secretaria Municipal de Saúde, registrou 247 vítimas fatais até a primeira semana de junho. Por lá, diversas organizações sociais têm se mobilizado para prestar auxílio para a comunidade, como a escola de samba nascida na região, a Sociedade Rosas de Ouro.

"A primeira ação foi a confecção de máscaras com restos de tecidos que estavam estocados dos últimos carnavais. Produzimos mais de 30 mil máscaras que foram doadas para ONGs e moradores do entorno da quadra, principalmente da Brasilândia", contou a escola. Além disso, também há distribuição de alimentos — macarrão, café, ovos — todas às quintas-feiras para a comunidade, como ocorre em outras agremiações em tantas partes da cidade.

Em abril, no Rio de Janeiro, a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) coordenou uma ação com as 14 escolas de samba que desfilaram no grupo especial neste ano. O objetivo era produzir aventais para profissionais da saúde e máscaras para os moradores de suas comunidades.

Só a atual campeã, Unidos do Viradouro, informou que mais de 11 mil máscaras foram doadas para asilos, componentes das escolas e para as regiões de periferia localizadas ao redor da quadra da escola, no município de Niterói. "A confecção de máscaras de proteção continua intensa", ressaltou a agremiação.

O sociólogo Tadeu Kçula - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
O sociólogo e sambista Tadeu Kçula
Imagem: Arquivo Pessoal

Apesar dessas ações ocorrerem durante a pandemia da Covid-19, as agremiações já prestavam apoio às periferias e favelas do país.

"Se formos observar, a maioria das escolas de samba do eixo Rio-São Paulo têm em seus nomes oficiais as palavras: cultural, social e recreativo", diz Tadeu Kçula, sociólogo, pesquisador, sambista e ex-presidente da Camisa Verde e Branco.

Historicamente, as escolas foram criadas nos espaços urbanos para serem nichos de sociabilidade, manutenção da ancestralidade e ambientes de formação cultural. O que está acontecendo atualmente é uma ressignificação de seus propósitos e adaptações de suas ações

Tadeu Kçula, sociólogo e sambista

Em 2014, a Favela do Moinho foi atingida por um incêndio em São Paulo. Por sua vez, a Camisa Verde e Branco colocou sua quadra como ponto central para receber doações de mantimentos e roupas para ajudar as famílias dessa comunidade.

Mas iremos achar o tom...

Uma das escolas mais novas da elite paulistana, a Dragões da Real não deixou o mês de junho sem a sua tradicional celebração de festa junina. O "Arraiá Drive-Thru" contou com venda de alimentos típicos, como curau e vinho quente, com sistema de entregas respeitando as regras de proteção da Organização Mundial da Saúde, e até uma "carrodrilha".

"Cada ala da escola teve um veículo decorado para fazermos nas ruas do bairro da escola uma carreata simbolizando uma quadrilha", explicou a agremiação. O valor arrecadado foi destinado ao preparo de marmitas que o departamento social distribui para pessoas em situação de rua na Vila Anastácio, na região oeste de São Paulo.

Até o modo do andamento do pré-Carnaval foi modificado. Com o pensamento no possível desfile de 2021, a Unidos de Padre Miguel, escola da Séria A carioca, divulgou que as eliminatórias para escolha do samba enredo serão virtuais.

"A disputa será transmitida ao vivo no canal da agremiação no YouTube a partir de 4 de julho. As parcerias inscritas irão se apresentar com número reduzido de participantes e não será permitida a entrada de torcida ou acompanhantes na quadra", informou a escola, cujo enredo se chama "Iroko: é tempo de xirê" e que contará sobre a "árvore-orixá" ligada, principalmente, às religiões de matriz africana, como o candomblé Ketu.

O Camisa Verde e Branco, uma das mais tradicionais escolas de São Paulo, sediada na Barra Funda, anunciou o projeto "Quadra Virtual", forma encontrada pela agremiação para seguir com o calendário de atividades que antecedem o Carnaval e garantir a saúde de seus componentes. "A primeira live será no próximo mês, no dia 19 de julho, como um ensaio virtual. Na transmissão estarão o intérprete, o time musical, o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira, além de alguns ritmistas", informou a escola. As eliminatórias do samba-enredo do Camisa também serão virtuais e a final está prevista para ocorrer em agosto em uma transmissão ao vivo.

O enredo do próximo carnaval é "Rezadeiras - Na fé do Trevo, eu te benzo! Na fé do Trevo, eu te curo!", homenagem às mulheres benzedeiras do Brasil e sua força espiritual.

Live da escola Morro de Casa Verde, de São Paulo - Erick Rocha / Divulgação Morro de Casa Verde - Erick Rocha / Divulgação Morro de Casa Verde
Ritmistas em live solidária da escola Morro de Casa Verde, de São Paulo
Imagem: Erick Rocha / Divulgação Morro de Casa Verde

As mudanças valem inclusive para quem praticamente viu o samba nascer. Matriarca do samba paulistano, Dona Guga — como carinhosamente é conhecida Laurinete Nazaré da Silva — é presidente de honra da escola Morro da Casa Verde, agremiação tradicional que, no próximo Carnaval, desfila no grupo de acesso. A escola realizou sua live no início do mês de junho e o objetivo foi ajudar profissionais que têm apenas o Carnaval como fonte de renda.

Em vídeo, a baluarte de 75 anos conta que está em casa cumprindo o isolamento social, mas "com saudades do Carnaval". "Fiquem em suas casas e se cuidem. A gente precisa de vocês no mundo do samba", reforça a matriarca.

O Alma Preta é uma agência de jornalismo especializado na temática racial do Brasil, cujo objetivo é construir um novo formato de gestão de processos, pessoas e recursos por meio do jornalismo qualificado e independente.