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Motoboy no RJ faz compras para idosos durante isolamento por coronavírus

O motoboy Wallace dos Santos Soares - Arquivo Pessoal
O motoboy Wallace dos Santos Soares Imagem: Arquivo Pessoal

Tamyres Matos

Colaboração para Ecoa, do Rio

24/03/2020 04h00

É irônico o destino de uma sociedade que precisa se reconectar com o senso de comunidade em pleno período de isolamento social. Se por um lado é preciso nos distanciarmos como medida de saúde pública, por outro, fortalecer o espírito coletivo frente ao novo coronavírus pode ter grande impacto, especialmente na vida de quem está mais vulnerável.

Desde que foi decretada a pandemia, o carioca Wallace dos Santos Soares, de 29 anos, alterou sua rotina. Motoboy, ele vem usando dois dias de sua semana para atender gratuitamente a demandas de idosos e outras pessoas de sua vizinhança que fazem parte do grupo de risco da Covid-19.

Em sua moto, ele percorre São Gonçalo, região metropolitana do Rio, comprando remédios, alimentos e outros itens de necessidade de quem corre mais perigo do que ele estando na rua. Wallace trabalha há quatro anos como motoboy, desde que foi demitido de uma atividade com carteira assinada. Ele faz entregas em dois turnos todos os dias.

A iniciativa foi inspirada em uma espécie de desafio que viu nas redes sociais. "Entre tantas coisas boas e ruins que as pessoas postam, essa campanha me chamou a atenção. Nós estamos fazendo o possível para ajudar aqui na região", conta.

O motoboy só lamenta o fato de que ainda haja uma parcela significativa dos moradores do seu bairro, Santa Catarina, sem se dar conta da gravidade da situação que vivemos. "Infelizmente, muitas pessoas estão achando que essa pandemia é brincadeira e colocam a vida em risco saindo de casa sem necessidade."

Sobre sua própria vulnerabilidade ao contágio, Wallace diz estar atento ao protocolo sanitário. "Assim que chego em casa, lavo as mãos e uso álcool em gel", conta, reforçando estar ciente de que não pode ter contato com seus dois filhos com a roupa que usou durante as entregas.

Útil a quem mais precisa

Foi também pensando em como ser útil a outras pessoas durante o período de isolamento que a professora de educação física e psicomotricista Maria Claudia Silva, que trabalha com crianças atípicas, resolveu gravar vídeos com atividades para os pequenos fazerem dentro de casa.

A professora de educação física e psicomotricista Maria Claudia Silva - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A professora de educação física e psicomotricista Maria Claudia Silva
Imagem: Arquivo Pessoal
Ela explica que a necessidade de manter o corpo ativo, ponto-chave durante esse período de recolhimento, é ainda maior nesses casos. "Crio atividades com materiais fáceis de ter em casa, para que alcance o maior público possível. Comecei desde que a academia em que trabalho fechou, em uma atitude correta, por conta da quarentena. Eu já usei bolas, grãos de feijão, cones, bexigas e tênis como materiais adaptados. Meu pensamento inicial era alcançar meus alunos, mas vi que estou ajudando outros pais. Isso é muito gratificante", relata.

As famílias agradecem. A acupunturista Carolina Planas Mansur sente que os vídeos de Maria Claudia são muito importantes para o trabalho contínuo que beneficia a saúde de Lucas Mansur, de 8 anos. "Meu filho é autista e, quando a rotina muda, a ansiedade dele vai a mil. Sempre foi cercado de terapias e agora preso em casa tem sido muito difícil. Os vídeos têm deixado a vida um pouco mais leve e a rotina de movimento diminui a ansiedade."

Comunidade importa

Em um prédio na cidade de Maringá, no Paraná, a iniciativa de solidariedade partiu de um bilhete da moradora Letícia Wietzikoski. O síndico Diego Jorge Leite, de 36 anos, conta que recebeu o pedido com satisfação e se disponibilizou, junto a uma boa parcela dos moradores do prédio, a participar da corrente solidária.

Bilhete em prédio do Paraná - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Bilhete deixado em prédio em Maringá, Paraná (março/2020)
Imagem: Arquivo Pessoal
"Nosso condomínio tem 144 apartamentos e acho que mais de 50% dos moradores são idosos. Estamos tentando ajudar, sabemos que a situação é feia. Já estamos proibindo as entregas aqui dentro, exceto quando os receptores são mais idosos. No sábado, vamos fazer um mutirão para levá-los para serem vacinados contra gripe", conta.

Fato é que estamos diante de um cenário em que a configuração básica da sociedade se alterou completamente. Para especialistas, as sensações de solidão e abandono podem ser devastadoras na experiência humana. Diante disso, o senso de comunidade entra como um antídoto.

"As epidemias são emergências da área da saúde em que existe uma ameaça à vida das pessoas e que causam um significativo número de doentes e mortos, sendo verdadeiras tragédias humanas. Os recursos locais tendem a entrar em colapso, prejudicando o funcionamento normal da coletividade e aumentando a insegurança", explica o psiquiatra formado na rede de saúde mental da Prefeitura do Rio de Janeiro Fernando Tenório.

O profissional explica que, nessa conjuntura, ações como as do motoboy Wallace, da professora Maria Claudia ou do condomínio paranaense têm um potencial para além da utilidade prática — que não substitui a urgência de iniciativas do Estado: o de causar alento.

As pessoas conseguem perceber que o que sentem é compartilhado, ainda que das mais variadas maneiras, por muitas outras pessoas e isso em algum lugar serve de alívio. Os medos, as frustrações, as angústias podem ser divididos e a dor tem um lugar menos pessoal, mais coletivo, podendo se transformar em uma energia. As ações solidárias são frutos dessa energia, da capacidade humana da resiliência - Fernando Tenório, psiquiatra