Tony Marlon

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Memória e futuro: se essa rua fosse sua, ela receberia o nome de quem?

Nossos heróis não viraram estátua. Morreram lutando contra quem virou. A frase está na animação brasileira "Uma história de Amor e Fúria", criada e dirigida pelo Luiz Bolognesi. Lançado em 2013, o filme conta a história de Abeguar e Janaína que, de tempos em tempos, voltam à forma humana em períodos importantes da história brasileira. Tudo a ver com a conversa das últimas semanas.

Um levantamento feito pelo jornal "O Estado de São Paulo" mostra que o país ainda tem 918 homenagens para ex-presidentes do período da ditadura militar. Nomeiam ruas, praças e municípios. Geralmente, celebra-se dessa maneira quem tem grandes feitos públicos. O relatório final de Comissão da Verdade apontou que 434 pessoas morreram ou desapareceram na ditadura. O feito seria esse, será?

A Câmara Municipal de São Paulo aprovou em 2010 um projeto de lei que permitia rever homenagens a pessoas ligadas à violação de direitos humanos. Com isso, o elevado Costa e Silva tornou-se elevado João Goulart. Saiu um presidente militar, entrou aquele deposto pelo golpe. Segundo reportagens da época, houve quem foi contra. E há até os dias de hoje.

Mestra e doutoranda em história pela Universidade Federal de Ouro Preto, em Minas Gerais, Vitória Ivo entende que essas movimentações dão um recado importante para a sociedade brasileira. "Esses movimentos sinalizam que ali houve uma mudança, um deslocamento do reconhecimento público de um torturador para outro sujeito. Para alguém que lutou por direitos humanos naquele contexto. Isso afeta a sociedade como um todo", defende.

Vitória aponta que além de demarcar os crimes cometidos no período da ditadura, a ação é uma espécie de recado sobre o que estamos pactuando valorizar e reconhecer como sociedade. Ela é integrante do projeto de pesquisa A Ditadura em Minas Gerais: história, memória e historiografia, vinculado à UEMG.

O Brasil é um projeto de país construído ao redor da conciliação e das acomodações. Mesmo quando elas expõem nossas dores e traumas históricos. Provocando novas dores e traumas. Por exemplo, ruas com nomes de pessoas violadoras de direitos humanos. Por exemplo, negócios que jogam com elementos e memórias do vergonhoso período escravocrata brasileiro. A memória, como tudo hoje no Brasil, é um território em disputa.

No 1º de abril deste ano, por exemplo, a UFPR (Universidade Federal do Paraná) informou ter revogado os títulos de doutores 'honoris causa' dos ex-presidentes Humberto de Alencar Castelo Branco, Artur da Costa e Silva e Ernesto Geisel. Todos do período militar. A decisão aconteceu por votação. Entre as reações à notícia nas redes sociais, uma parte expressiva dizia que o revanchismo não levará o Brasil a nada.

Para Vitória, há dois pontos a se observar em todas essas movimentações que têm acontecido ao redor da memória, mas que não se esgotam aí. Na verdade, eles iluminam uma conversa bem maior e mais complexa. "O primeiro é que retirar nomes de torturadores é, em certa medida, uma maneira de fazer reparação junto às vítimas da ditadura e aos seus familiares. Em certa medida, já que muitas famílias seguem em dúvida sobre o paradeiro de seus entes ", diz.

O governo Lula prometeu a volta da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Até agora, não cumpriu com a promessa. Essa é uma pauta imprescindível para os familiares.

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"Já o segundo ponto é que a Lei da Anistia, criada e instalada por militares, não possibilitou o julgamento dos torturadores, como outros países fizeram. E isso nos traz ao que acontece até os dias de hoje: uma institucionalização da tortura enquanto uma política de Estado".

Para a pesquisadora, "a ditadura não criou o fenômeno, mas agravou a sua compreensão, arrastando essa lógica até os dias atuais". Vitória finaliza chamando atenção para o fato de que pode não parecer, mas toda essa conversa é sobre nosso futuro. "É um revê do passado no presente e que, a partir deste presente, se reestrutura um outro futuro".

Quem sabe, um futuro em que a rua ganhe o nome da professora mais inspiradora que já existiu naquela região. E não como tem sido até hoje, sobre quem tem sido até hoje.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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