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Tony Marlon

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Em 5 anos, uma biblioteca pública foi fechada a cada dois dias no Brasil

Entre 2015 e 2020, foram 764 bibliotecas fechadas no país - iStock
Entre 2015 e 2020, foram 764 bibliotecas fechadas no país Imagem: iStock

22/07/2022 06h00

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De 2004 a 2011 o país ganhou 1.705 novas bibliotecas. De 2015 a 2020, perdeu ao menos 764, segundo dados da Secretaria Especial da Cultura, do Ministério do Turismo. Uma a cada dois dias. O número pode ser maior, existe a subnotificação. Poucas notícias resumem tão bem o espírito do nosso tempo: quando não mata o corpo, o Brasil de hoje mata a imaginação.

"Tudo que a gente vai realizar na vida da gente, seja uma festa de aniversário, ou a decoração da nossa sala, precisamos imaginar antes de fazer", diz Celice Oliveira, especialista em literatura para crianças e jovens. "Para imaginar, a gente tem que ter repertório. Para ter repertório, precisamos ter acesso. Quanto mais acesso, maior a gente fica".

Em boa parte do país, a biblioteca pública é, justamente, esse ponto de acesso que entrega o necessário para manobrar a vida, no dia a dia. Mas também ideias para os passos futuros.

A própria Celice conta que foi graças a um projeto na biblioteca do bairro que encontrou sua vocação, que hoje é um trabalho e uma luta. Ela alerta, atenção à falsa ideia de que todas as pessoas já estão no digital, de que os livros agora chegam no celular, na tela do computador. Não é verdade.

"Vimos durante a pandemia o quanto as nossas crianças e jovens das periferias de todas as regiões sofreram para conseguir estudar a distância, por falta de acesso à Internet. A desigualdade social já era gritante, na pós pandemia então ficará mais nítida". E é justamente nesse depois que não chegou oficialmente, que teremos ainda menos lugares para circular o conhecimento e a vida. E justo onde mais se precisa.

"Eu não sei contar as vezes em que ouvi que 'aquele livro, aquela leitura me salvou'. E onde está o milagre?", pergunta a educadora Bel Santos Mayer. "Na companhia que os livros fazem, espantando o medo, abrindo veredas. Um livro nunca é só um livro, e uma biblioteca não é um depósito".

Para ela, que faz parte de diversas redes pela democratização do livro e da literatura, é preciso lutar contra a ideia de que as periferias não leem. São crenças como essa, acredita, que sustentam decisões como as de fechar bibliotecas, por exemplo. Uma a cada dois dias, nos últimos 5 anos.

"Essas medidas reforçam o imaginário que deposita no indivíduo a responsabilidade por dar um jeito para comprar o que deseja ler. Isenta o Estado da sua responsabilidade de criar e manter bibliotecas que tenham vida, que sejam equipamento cultural de toda a comunidade", aponta a educadora.

Bel traz uma ideia importante aqui, da biblioteca como lugar de encontro entre os saberes culturais de um território. Já faz algum tempo que elas não são, apenas, onde se pega um livro emprestado, ou se vai para fazer pesquisas. Nunca foram tão importantes. Um bom exemplo disso é o projeto Veia e Ventania, explicado pela Suzi Soares, do Sarau do Binho:

"Outro dia o Binho [poeta da periferia da zona sul de São Paulo] encontrou um homem de uns trinta anos que veio mostrar a foto de seu filho participando de um sarau nosso na biblioteca. Ele estava muito feliz, porque quando era estudante, também participou destas atividades. Ou seja, está passando de pai para filho".

Suzi diz que, desde 2012, o grupo tem estimulado uma relação mais próxima dos movimentos culturais com as bibliotecas municipais. Queriam, primeiro, que elas colocassem em seu acervo mais autoras e autores periféricos. E junto, que estudantes alimentassem o prazer em ler construindo essa conexão com a biblioteca como um espaço de infinitas possibilidades. O projeto durou até 2017, foi um sucesso

"Foi muito importante para aproximar os estudantes das escolas próximas às bibliotecas dos autores da literatura produzida por pessoas das periferias", começa Suzi. "Muitos deles, que nos acompanhavam nas atividades, continuaram ligados aos nossos trabalhos em outros locais. Outros passaram a produzir seus próprios textos e poemas". Perceba o poder deste encontro: bibliotecas, escolas e saraus.

Nessa altura da resposta de Suzi, lembre o que Celice falou, lá no começo: quanto mais acesso, maior as pessoas ficam. "Imagine você, crianças e jovens periféricos pensando grande, coisas grandes, entendendo grande, imagina o tamanho que a gente pode ser? Não nos querem deste tamanho". Para a educadora, só isso explica fecharem lugares que deveriam ser multiplicados por treze, a essa altura da realidade.

Num país com tantos obstáculos ao livro e à leitura, em que algumas pessoas precisam lutar tão mais para serem quem vieram ser na vida, é preciso não perder de vista o poder da imaginação. E que ela é tão poderosa quanto a decisão por agir, que vem depois. Bibliotecas públicas precisam ser entendidas como um investimento básico na construção dos nossos futuros desejáveis. Não se sonha o que não se conhece.

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Abaixo assinado em Defesa do Livro, Literatura e Bibliotecas

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