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Tony Marlon

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Comercial do The Voice+ mostra o Brasil que pede passagem

Daniel e Claudia Leite viraram a cadeira para João Canalha no The Voice+ - Reprodução/TV Globo
Daniel e Claudia Leite viraram a cadeira para João Canalha no The Voice+ Imagem: Reprodução/TV Globo

04/04/2021 06h00

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A TV conta o que pensa, sente e faz uma sociedade. Ou ela a ajuda a construir seus valores, pensamentos e jeitos de agir no mundo? Ao longo de décadas, pessoas preparadas e muito sabidas estudaram essas questões. Já eu pensei sobre isso só agora, depois de assistir uma chamada da final do The Voice+, da TV Globo.

Anunciando as oito vozes que disputariam o prêmio, pergunta a quem está em casa: "e quem será o campeão?" Aí tem uma leve pausa na voz, que completa: "ou a campeã da temporada?"

Parece simples, uma bobagem, mas não é. Não sei o tanto de pessoas que se atentaram a este detalhe, mas o pedaço que faz referência ao feminino no comercial diz muito sobre um pequeno sopro chegando nas grandes estruturas. Aqui fora, ainda bem, o que temos é um vendaval de transformações rumo a um futuro para todo mundo.

Até alguns anos atrás, a parte que referencia uma mulher em chamadas assim não existia. Quer outro exemplo? A música tema deste ano do Big Brother Brasil (BBB). Já percebeu o Paulo Ricardo, ali no encerramento do programa, chamando por um hei, brothers. E depois: hei, sisters? Existia essa parte na primeira versão, em 2002, e eu não percebi? Ou é uma resposta ao espírito do nosso tempo que grita que o mundo não é, ele está sendo? Como diz Paulo Freire.

Busca aí na memória, ao falar com todo mundo, o texto da TV, como o discurso em geral da sociedade, é sempre construído em cima de uma linguagem orientada ao masculino, perceba: o campeão, o telespectador, o participante. Outro dia, convidando para o futebol de domingo, num canal até apareceu assim: prepara o seu coração, torcedora. Inédito.

Eu sei, ao dizer torcedor a intenção não é falar apenas com os homens. E também: o termo homem refere-se, tradicionalmente, ao conjunto da humanidade. Uma expressão que universaliza a nós, seres humanos viventes e pensantes do mundo, para ficar mais prático de ser dito por aí. Mas conversemos sobre o que está por trás, sobre o invisível de decisões como essa.

Nossos valores como sociedade foram construídos a partir das referências de um sistema patriarcal. Portanto, expressam diretamente os interesses, aí sim, de nós, homens, que sempre ocupamos os principais lugares de destaque e poder. Vai dizer que você nunca prestou atenção nisso? É impensável que, desse jeito, a linguagem e a comunicação não fossem diretamente influenciadas por essa realidade, entende?

É como esperar que sua casa não fosse nas cores que você gosta. Ou tivesse os quadros de sua cantora preferida na sala de estar. Sob seu poder, obviamente, suas paredes traduzirão seus interesses, suas vontades, gostos e a sua personalidade. Ou ela seria algo que você não se reconhece?

Com a linguagem e a comunicação funciona da mesma forma. Elas traduzem interesses e visão de mundo deste ou daquele grupo que as dominou historicamente. Consegui me explicar?

Mari Rodrigues, colunista de ECOA, já fala sobre um depois dessa conversa que estou propondo aqui com você, imagine só. Em setembro do ano passado, por exemplo, ela escreveu sobre o caráter sexista das demarcações de gênero na língua portuguesa e de como a linguagem neutra pode nos fazer pensar sobre o sexismo estrutural da nossa sociedade. Ou seja: não está na hora de achar uma maneira de escrever sobre e para toda e qualquer pessoa?

Perceba: uma parte de nós, sociedade, já está discutindo como construir uma linguagem que acolha e dialogue com todo mundo, sem marcar gênero. Uma segunda parte, aqui entra o exemplo da TV, só agora lembrou que pode ser, talvez, quem sabe, nem todas as pessoas se reconheçam como um campeão, com O no final.

E tem a terceira parte que acha essa conversa uma grande perda de tempo, bobagem. Em geral são as pessoas que sempre existiram para a sociedade, tanto na linguagem quanto apresentando os programas dessa mesma TV. Esperado que não as incomode que, o tempo todo, tudo, seja sobre elas e para elas, né.

Em uma entrevista a Lázaro Ramos, no programa Espelho, o ator e diretor Pedro Cardoso disse algo que me marcou, que artista não é vanguarda, mas alguém que compreende e dá voz para algo que já está vivo e pulsando na humanidade. Eu gosto dessa imagem, vou trazer para nosso caso.

Então, que os meios de comunicação, que são antenas, mas também influenciadores da realidade, consigam entender um pouco mais rápido que para falar com todo mundo é preciso ter todo mundo falando. E que isso é tão importante quanto mexer em seus comerciais.