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Primeira Infância

OPINIÃO

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Quando a política conversa pelas infâncias

Os Espaços Mãe Coruja são referências para as famílias e contam com médicos, enfermeiros, assistentes sociais e outros profissionais - Prefeitura de Recife/Divulgação
Os Espaços Mãe Coruja são referências para as famílias e contam com médicos, enfermeiros, assistentes sociais e outros profissionais Imagem: Prefeitura de Recife/Divulgação

Ana Cândida Pena e Carolina La Terza

29/04/2022 06h00

Uma casa com dois cômodos onde uma mãe cuida de cinco filhos — uma adolescente de 13 anos, uma criança de sete anos autista e trigêmeos com síndrome congênita do zika vírus —, tendo como única fonte de renda o Bolsa Família, na época na faixa de R$ 300. Quanto apoio é preciso oferecer para que esta família consiga sair de uma situação de vulnerabilidade como essa?

Em um país desigual como o Brasil, um dos nossos maiores desafios é garantir que ninguém fique para trás quanto ao acesso a direitos e serviços, de forma que garanta nosso desenvolvimento pleno como pessoas. Independentemente da região geográfica, das crenças, cultura e situação financeira de nossas famílias, todos merecemos condições dignas para nascer e crescer.

Os desafios e oportunidades a que somos expostos começam ainda antes do nascimento, na gestação. Já sabemos, também, que é desproporcional o impacto do que experimentamos nos primeiros anos de vida, influenciando toda a nossa trajetória. Acolher e envolver as gestantes no sistema de cuidados é uma boa maneira de incluir as futuras crianças na rede de atenção de que vão precisar ao longo de sua formação, do pré-natal à matrícula escolar.

A responsabilidade pela prosperidade humana é de toda a sociedade, mesmo daqueles que não são cuidadores de crianças ou, talvez, não tenham tanto conhecimento sobre o assunto. Mas não se pode negar que é nas mãos dos governos que estão as demandas mais diretas e também mais básicas, como garantir que todas as crianças tenham acesso à creche de qualidade e, no futuro, a escolas bem equipadas e com educadores capacitados.

Também é da gestão pública a função de ofertar ruas e espaços públicos de lazer bem cuidados, convidativos e seguros, de forma que incentivem o uso da população. Habitação acessível, saneamento básico, cultura, segurança pública, emprego digno? Ufa! De todos os temas, talvez o maior desafio, e obrigação constitucional do Estado, seja a oferta de um sistema público de saúde de qualidade, que ofereça atendimento médico e políticas de prevenção a doenças para todos, O desafio não é pequeno.

Por outro lado, a saúde é a porta de entrada para o acesso a serviços e direitos públicos, muito em função do SUS, um amplo e complexo sistema de que dispõem os brasileiros. Para atender as demandas continentais do país e superar os predicados negativos que vêm acompanhando a política, é fundamental a união de esforços na mesma direção. Mas o pessimismo não é obrigatório, e temos casos inspiradores para compartilhar por aí.

Um bom exemplo é o programa Mãe Coruja Pernambucana, que está completando 15 anos de atenção às gestantes e às novas famílias, implantado em mais de 100 cidades. Inspirada na rede estadual, Recife desenhou seu próprio programa, considerando suas peculiaridades e os serviços e aparelhos públicos de que já dispunha. Ao invés de competir com o programa estadual, a ideia foi incorporar lições aprendidas e levar toda a experiência para o município.

Com base nos dados de mortalidade materno-infantil e de vulnerabilidade social dos territórios, 10 bairros prioritários foram selecionados para implantar o Mãe Coruja Recife. A ideia é cadastrar a mulher ainda no período da gestação, de forma que ao nascer a criança já esteja sob a atenção da gestão pública. O cuidado intersetorial garante o diálogo com oito secretarias municipais, que fazem a retaguarda da equipe de atenção básica, responsável pelo pré-natal e saúde dos bebês.

Os Espaços Mãe Coruja são referências para as famílias e contam com médicos, enfermeiros, assistentes sociais e outros profissionais - Prefeitura de Recife/Divulgação - Prefeitura de Recife/Divulgação
Mães em um dos espaços Mãe Coruja, em Recife
Imagem: Prefeitura de Recife/Divulgação

Outra potencialidade do programa foi sua inclusão nos Compaz de Recife, espaços multidisciplinares de convivência para crianças e famílias, que se tornaram referência nacional como fábricas de cidadania. Esportes, lazer, programas de qualificação e diversos serviços jurídicos ofertados no mesmo local. Agora as gestantes e os bebês também contam com seu espaço por lá.

A vigilância positiva das gestantes permite monitorar o comparecimento às consultas e aos exames necessários, a vacinação das crianças e a realização de todos os atendimentos importantes para o crescimento. Ao mesmo tempo, mantém um diálogo íntimo com as novas mães, oferecendo apoio, informação e acolhimento. Os Espaços Mãe Coruja, chamados no programa estadual de canto Mãe Coruja, centralizam esses cuidados e se tornam referências para as famílias, que contam com médicos, enfermeiros, assistentes sociais e outros profissionais.

Ao completar sete consultas de pré-natal, a mãe recebe um kit com banheira, bolsa, fralda descartável e roupinhas de bebê. Assim como o Compaz, os espaços Mãe Coruja também oferecem cursos de capacitação para as mães em design de sobrancelha, manicure e corte de cabelo. Ao final, recebem um kit para começar a trabalhar, incentivando a geração de renda. Os bebês são acompanhados mensalmente no primeiro ano, depois a cada três meses e, a partir do terceiro ano, a avaliação periódica de acompanhamento é anual.

Quem nos trouxe a história que ilustra o início deste artigo foi a coordenadora municipal do Mãe Coruja Recife, Cláudia Soares, sobre uma família atendida pelo projeto, localizada pela equipe pouco antes do início da pandemia. "A gente começou com a intervenção intersetorial e se organizou para dar acesso aos direitos que ela tinha. Uns três meses depois, essa mulher chega no Espaço Coruja de batom, gente, de batom! Isso foi uma coisa tão significativa pra mim. Ela disse que estava indo no Compaz inscrever os meninos no esporte e quando perguntamos se ela queria alguma ajuda, ela disse não, que ia até lá resolver tudo. Aí veio a sensação de que a gente fez a diferença na vida dela", conta a coordenadora.

Hoje são mais de 17 mil mulheres cadastradas no programa, que conta com 19 espaços de atendimento espalhados por 44 bairros de Recife. A perspectiva é passar de 50% das gestantes da cidade atendidas pelo projeto. Para a coordenadora, o programa apresenta o melhor indicador possível de uma política pública de sucesso: a indicação de uma mãe para outras. Amigas, parentes e vizinhas levam o programa no boca a boca, o que garante uma adesão constante de novas usuárias. Afinal, os melhores resultados a gente vê na prática — o eco dentro das comunidades!