Opinião

Geração cidadã de dados: quando a própria população busca soluções

Quando as estatísticas não te representam, o que fazer? Produzi-las, por que não? As questões de representatividade no Brasil e no mundo se apresentam em muitos cenários e os números deveriam ser taxativos para conhecermos e reconhecermos como um velho problema. Mas nem sempre eles estão disponíveis para isso. A novidade é que há pessoas comprometidas com a realidade e a ciência, produzindo bases de dados para contar sobre desigualdades e vivências, a partir das periferias, às margens dos órgãos ditos oficiais.

Estamos nos referindo a toda uma geração cidadã de gente que faz e que cria indicadores o tempo todo. Em 2016, elaboramos o projeto chamado Cocôzap, iniciativa que contrasta e complementa os dados publicizados sobre saneamento básico em favelas, tendo como ponto de partida o Complexo da Maré, onde nasceu o data_labe e onde rolou a primeira reunião com a Casa Fluminense, para questionarmos juntas o dado de 94,4% de "esgotamento sanitário adequado" no município do Rio, segundo o último recenseamento completo do país, o longínquo Censo de 2010.

A ideia era gerar dados a partir de nosso próprio engajamento e indicar diagnósticos e soluções mais legítimas, baseadas em evidências fornecidas por quem vive o extremo dos dados. Através de denúncias dos moradores via WhatsApp, o projeto mapeou diversas violações de direitos sanitários, promoveu encontros comunitários e produziu mais de 20 reportagens em formato de texto e podcast com base em dados públicos e histórias da comunidade que evidenciam um racismo ambiental deflagrado desde a colonização.

Nascia ali uma nova camada na militância de nossas vidas e organizações: a da Geração Cidadã de Dados, a GCD.

Vivemos um cenário de disputa no qual as pessoas, protagonistas dos bancos de dados (privados ou públicos) são figurantes no jogo de poder que envolve decisões sobre políticas públicas e uma cidadania plena. As perguntas que frequentemente fazemos são: a quem pertencem os dados? A favor de quem eles estão mais ou menos disponíveis? Por quem são produzidos? Como garantir novas narrativas que permitam o desenvolvimento de comunidades plenas de direitos?

A ideia central da GCD é de que a produção independente de bases estruturadas de informações representa uma frente ativa de acesso ao debate público e à formulação de políticas. É ação direta e cidadã em um campo negligente, classista, racista e sexista. Consideramos GCD como um conjunto de ações que possibilitam à cidadania gerar, recolher e utilizar dados para benefícios de suas comunidades ou coletivos.

É necessário debater como as práticas de produção de informação da sociedade civil organizada têm se reinventado a partir de suas potências, limitações e criatividades metodológicas e tecnológicas. Por isso, nos dias 19 e 20 de setembro reunimos pela primeira vez organizações e coletivos— com pesquisadores que têm produzido enfrentamentos à ciência tradicional, ainda pouco participativa e diversa —para o 1º Seminário de Geração Cidadã de Dados. Desse encontro elaboramos um documento de recomendações para o poder público com práticas de valorização dos dados gerados pela e para a periferia e também desenvolvemos um guia para coletivos e organizações que desejam produzir suas próprias pesquisas.

Também lançamos o Mapa da Desigualdade 2023 —ferramenta de monitoramento organizada pela Casa Fluminense— que apresenta 40 indicadores retratando o cenário de desigualdade econômica, racial, de gênero e climática da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Depois de três anos, uma pandemia, duas eleições, cortes e atrasos no Censo Demográfico, desmonte de órgãos como o Centro Estadual de Estatísticas (CEPERJ) e muita informação desatualizada, a quarta edição do Mapa se soma aos esforços da GCD para falar o peso da tarifa do transporte no bolso dos trabalhadores, violência de gênero, endividamento, tiroteios e outros temas, analisados durante nove meses de varredura em 23 bases de dados governamentais e empresariais, além de muitos pedidos de acesso via Lei de Acesso à Informação e muita geração cidadã.

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Não foi fácil. Desde a sua criação, o Mapa da Desigualdade do Rio tem exposto as ausências e fragilidades dos dados disponíveis nas periferias metropolitanas, para além da capital fluminense. A publicação também denuncia a negligência das bases governamentais que não agregam marcadores sociais de renda, raça, gênero e sexualidade, e impedem a focalização das políticas públicas para reduzir as desigualdades onde elas acontecem. Esta foi uma das questões centrais que marcaram o encontro como um todo.

Com essa rede conectada, a GCD dá mais um passo na busca por uma ciência cidadã que aproxima tecnologia e consciência de classe; empoderamento racial e feminino; direitos humanos e políticas públicas.

Clara Sacco é co-fundadora e diretora do data_labe e bacharel em Estudos de Mídia pela UFF.
Gilberto Vieira é co-fundador e diretor do data_labe e doutorando em Gestão Urbana pela PUCPR.
Larissa Amorim é cria da Penha, Zona Norte do Rio, coordenadora executiva da Casa Fluminense e jornalista pela UERJ.
Vitor Mihessen é cria de Realengo, Zona Oeste do Rio, co-fundador e coordenador geral da Casa Fluminense, economista pela UFRJ e mestre pela UFF.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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