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OPINIÃO

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Kurt Cobain: O que aprendi sobre saúde mental com o líder do Nirvana

Kurt Cobain, no MTV Unplugged, em novembro de 1993 - Getty Images
Kurt Cobain, no MTV Unplugged, em novembro de 1993 Imagem: Getty Images

Dodô Azevedo*

05/04/2023 06h00

"Acho que se eu tivesse nascido em uma cidade assim, minha vida teria sido muito menos miserável", murmurou Kurt Cobain em uma tarde quente de janeiro, dentro do ônibus da banda, onde conversávamos a caminho do hotel, vindos da passagem de som no Sambódromo.

De manhã, o vocalista do Nirvana havia observado as asas delta no céu e gostaria de fazer um voo antes do show. Ao chegar no hotel, nos separamos de Krist Novoselic e David Grohl, figuras esplendorosamente leves e fúteis, nos juntamos a amigos meus e passamos o resto do dia fazendo uma enorme e desgraçadamente profunda entrevista com Kurt, que pode ser lida hoje em cópias antigas da Revista Bizz, que publicou boa parte de nosso papo, e um áudio que, após passar pela MTV brasileira, perdeu-se e vez em quando é resgatado misteriosamente por fãs clubes pelo mundo.

Daquele dia poderoso guardo a memória de um papo com um garoto vítima da romantização do comportamento de pessoas que não vão nada bem de saúde mental.

Quando quebramos a perna, fazemos um raio-x, vemos a perna quebrada, a imobilizamos, e a sociedade aceita ver uma pessoa andando de perna quebrada na rua. Saúde mental é sobre um órgão do corpo que não aceitamos que se quebre. Pior, romantizamos.

Achamos o máximo, compramos mais camisetas do ídolo. Assim, em vez de ir ao médico, Kurt Cobain, Amy Winehouse, Cassia Eller, Jim Morrisson vão ao cemitério.

O cemitério de Pére-Lachaise, em Paris, um dos meus lugares favoritos no mundo, está lotado de gente assim. Quando vou a Paris, choro na frente do túmulo de Oscar Wilde, que morreu com sintomas da meningite que tinha, da sífilis que tinha e da infecção no ouvido que causava dores indescritíveis e alucinações infernais. Choramos nos túmulos, mas não entendemos o quanto somos responsáveis.

Dizer, com um sorriso nos lábios, coisas como "fulano é muito doido", "Nelson Cavaquinho não parava em pé, naquele dia, de tanta cachaça", "naquele madrugada, meu namorado, após beber todas, acordou em surto achando que era 1980". É ser conivente com o preconceito que há com o diagnóstico relativo à saúde mental. Uma família prefere dizer que uma pessoa está morrendo de câncer do que de uma crise por distúrbio bipolar. Ou atribuir as questões de saúde mental à sensibilidade romântica.

Durante o papo com Kurt Cobain, ocorrido um dia após a ida a São Paulo, em que ele entregou-se à cocaína com amigos a anfitriões, ele curava a ressaca voltando a tomar sua dose de lítio.

O lítio, estabilizador de humor, é um divisor de água no tratamento dos disturbios bipolares, tipo de estado que faz a pessoa ir de um episódio de mania (excitação) profunda para depressão absissal, ou os dois juntos ao mesmo tempo (o que já chamamos de maníaco-depressivo). "Eu estou tão feliz / Porque hoje encontrei todos os meus amigos / Eles estão na minha cabeça. Eu sou tão feio". É a tradução do início da letra de "Lithium", que Cobain escreveu para o álbum "Nervermind".

"Me sinto preso. Tudo o que odeio sobre minha persona, a que canta canções como 'Lithium' no palco para um público que reage como estivesse eu comemorando algo, não pode nem morrer. Se morrer, irá potencializar-se.", nos disse, naquela tarde bonita de sol. Mas a potência da persona venceu.

Kurt Cobain, o rock star atormentado, cujo tormento vendia milhões (e mesmo você talvez não teria clicado neste texto se seu nome não estivesse no título), deu um tiro na própria cabeça, em abril de 1994, um ano e poucos meses depois de nos conhecemos. Minto.

Não cheguei a conhecer o rock star. Conheci a pessoa "por trás" do rock star. Da persona. Por conta de uma relação que começou no passeio no ônibus da banda pelas paisagens luxuriantes da cidade do Rio de Janeiro, e se aprofundou quando o informei que deixaria a lente da câmera tampada, captando só o áudio, porque o que meus amigos e eu queriamos ali era conhecer o garoto Kurt. E assim se deu. Mas o garoto se foi junto com a persona.

Seattle, a cidade na qual onde Cobain foi criado, tem um índice de desenvolvimento humano 8 vezes maior que o Rio de Janeiro, mas Kurt estava convicto que a cidade teria sido o seu lítio.

Mas, como diz seu próprio verso, tudo está em nossa cabeça. Quando quebra o osso imaginário dentro dela, temos que torcer hoje, em 2023, que estejamos cercados de pessoas que não romantizem a cabeça quebrada , de pessoas que não tenham preconceito de entender a própria natureza do mundo, com o comportamento de seus mares e rios, sua variedade florestas, as diferenças de temperatura entre dia e noite em desertos, as montanhas de todos os formatos e espécies de minerais, vulcões prontos para explodir em magma, e a terra com suas placas tectônicas capazes de matarem mais em terremotos do que em guerras, e as cidades desumanas inventadas pelo ser humano, enfim, entender o mundo como ele é: um excitante lugar maníaco-depressivo.

*Dodô Azevedo é escritor, roteirista, DJ, cineasta, professor de fllosofia.