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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Em SP, no Quilombo Saracura, obras do metrô atravessam a encruza de Exu

Impacto da obra da futura estação Vai-Vai Saracura no bairro do Bexiga - Inês Bonduki/UOL
Impacto da obra da futura estação Vai-Vai Saracura no bairro do Bexiga Imagem: Inês Bonduki/UOL

Claudia Alexandre*

12/02/2023 06h00

A enunciação de Exu volta a reinar no carnaval, não apenas porque foi marcado na última temporada pelo estrondoso campeonato da Grande Rio no carnaval carioca. Foi quando Exu reinou, em plena avenida, em meio a pandemia e ao crescimento de casos de intolerância religiosa no Brasil, contra religiões de matrizes africanas.

Foi a comunidade da Baixada Fluminense que espargiu na Sapucaí o tema "Fala Majeté! Sete Chaves de Exu". Exu sempre foi da festa, do carnaval mesmo quando injustamente associado ao diabo cristão (pelos incrédulos intolerantes) sempre esteve no centro da resistência do povo preto por justiça. Só desafia quem não tem juízo.

Em São Paulo, nem bem a folia de 2023 começou e as peripécias de Exu já evocam o som do provérbio africano "Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje".

O aforismo está aquecendo o movimento Mobiliza Saracura Vai-Vai, que tenta desenrolar um imbróglio contra a Linha Uni, responsável pela construção da futura estação do metrô que vai atravessar o bairro do Bixiga e está expondo um dos mais recentes casos de desprezo com o patrimônio cultural material e imaterial afro-brasileiro da cidade.

O local é marco das memórias do antigo Quilombo do Saracura, repleto de narrativas sobre experiências da população negra. O canteiro de obra foi instalado onde durante 50 anos funcionava a sede da escola de samba Vai-Vai, uma das mais antigas e mais negras agremiações carnavalescas, que após ser desalojada enfrenta o problema da falta de espaço físico para dar continuidade às suas atividades.

O endereço Rua São Vicente, esquina com as ruas Lourenço Granato e Cardeal Leme, que dá acesso à Rua Manuel Dutra, é uma encruzilhada famosa, local onde a comunidade do samba realizava seus ensaios e as oferendas para o orixá Exu, o protetor da escola. Desde o início da década de 1970, a escola mantinha assentamentos e rituais para os orixás Exu e Ogum, os patronos da escola naquele endereço.

Com o começo das obras, uma sucessão de fatos leva a uma abordagem na perspectiva do aforismo africano, que remete a ancestralidade e a dimensão espiritual acessada pela devoção daqueles sambistas.

Não que essa seja a principal questão com a descoberta do sítio arqueológico, porém a atenção as heranças de práticas afro-religiosas no local foram sinalizadas e está na agenda da mobilização contra os atropelos no projeto da futura estação do Linha 6 - Laranja, que também mira a conivência da empresa contratada para as pesquisas arqueológicas e o Iphan - o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Logo no início, em meados de março de 2021, a empresa de arqueologia esbarrou em vestígios de materiais que identificavam a área como um sítio arqueológico de alta relevância.

Mesmo sem nenhum aviso aos moradores locais e sem dar a devida atenção aos achados, a empresa foi autorizada a dar sequência às obras, o que provocou a formação do coletivo, para defesa do legado negro que remete ao antigo quilombo e salvaguarda dos achados.

Assim o Mobiliza Saracura Vai-Vai passou a reivindicar: atenção do poder público para o risco da continuidade das obras, que estão em plena atividade; a mudança imediata do nome da estação de "14 Bis" para "Saracura/Vai-Vai"; e um plano de Educação Patrimonial gerido com a sociedade civil, que garanta a permanência, guarda e preservação dos achados em local adequado no próprio bairro.

Sobre as experiências negras legadas no território do Bixiga, é urgente que sejam consideradas uma possível relação entre os recentes achados com as diversas práticas e tradições de matrizes africanas que possibilitaram as sociabilidades com o solo e todos os recursos naturais disponíveis.

A Bela Vista, transformada em Bixiga pelos imigrantes italianos é na verdade um lugar onde o povo negro construiu uma identidade peculiar no famoso bairro paulista ao som de tambores, futebol, batucadas, capoeira, macumbas e candomblés. Parte dessa ancestralidade, que emergiu recentemente ao som das máquinas tem provocado a luta por um passado, que até pouco tempo estava sob a guarda dos sambistas da Escola Vai-Vai e seus orixás guardiões - Exu e Ogum, que foram despejados daquela encruzilhada, justamente (e injustamente) para dar passagem ao metrô.

Resíduos materiais e elementos associados aos sistemas de crenças afro-brasileiras podem ajudar a compor um mosaico histórico, que muitas vezes não são considerados bens culturais locais por estudos arqueológicos, que os descartam como "lixos arqueológicos". Exemplos envolvendo embaraços pela falta de conhecimento sobre religiões de matrizes africanas, comunidades tradicionais e povos de terreiros ocorreram bem perto dali, no Bairro da Liberdade, em 2018, com a descoberta das ossadas no sítio arqueológico do Cemitério dos Aflitos.

Na ocasião lideranças afro-religiosas reivindicaram a intervenção para que a remoção dos ossos só fosse realizada após passar por rituais restritos e orientação sobre a manipulação correta do material encontrado no "campo santo", esqueletos da época da escravidão, enterrados entre 1775 e 1858 foram encontrados em 2018, a cerca de um metro abaixo do nível da rua. Todo o trabalho espiritual teve a supervisão de um babalorixá, seguido de um pedido público de desculpas da empresa técnica envolvida.

Entre as implicações da continuidade da obra no Bixiga, também está a negligência com o patrimônio cultural e de tradições de matrizes africanas, ligadas às religiosidades negras naquele território paulista, onde a intolerância religiosa atravessou as relações entre pretos e brancos, maioria de origem italiana.

O Mobiliza Saracura Vai-Vai fez vários avisos das urgências em relação ao sítio arqueológico, em audiência pública, reunião com parlamentares, ato público, atividades de conscientização e matérias na imprensa.

O consórcio não atendeu nenhuma reivindicação, garantindo que a continuidade da construção não afetaria a área do sítio arqueológico, marcando inclusive uma nova ação de escavação no local para aumentar a profundidade à procura de novos achados.

Nada sensibilizou os responsáveis pela empresa, nem mesmo o aviso dos riscos de se realizar novas escavações no período de chuvas, que antecede e pode invadir os dias de carnaval.

A empresa insistiu e foi surpreendida com a forte chuva que atingiu a cidade de São Paulo, na última terça, dia 7 de fevereiro, que provocou diversos estragos e alagamento das obras e nas ruas do entorno. Muitos pedregulhos, que se soltaram da obra, foram responsáveis pelo entupimento dos bueiros por ali.

O enunciado de Exu atirando a pedra caberia perfeitamente naquele momento em que uma enxurrada estourou a barreira de concreto feita para as novas escavações arqueológicas e jogou quilos de pedras pelas ruas. Não foi falta de aviso.

Mas foi o que bastou para o coletivo anunciar que acaba de entrar com uma ação na Justiça Federal de São Paulo em parceria com o Instituto de Referência Negra e o Movimento Negro Unificado contra os responsáveis pela construção da futura estação. O pedido protocolado na 8ª Vara Cível quer garantir a preservação do local e pede a realização de perícia de um arqueólogo da União.

Mesmo que uma parte da história do povo negro na cidade de São Paulo esteja ameaçada e atravessada pela nova linha do metrô, a disputa simbólica vai continuar resistindo contra as violências da contemporaneidade, contra a intolerância religiosa e contra o racismo sistêmico que fez desaparecer aquela antiga encruzilhada, que é a materialidade maior do orixá Exu. Laroyê.

*Claudia Alexandre é Ebomi Osún, Jornalista, Doutora e Mestre em Ciência da Religião (PUC-SP), Pesquisadora de Sambas e Tradições de Matrizes Africanas; Integrante da Cojira-SP (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial) e do Movimento Saracura Vai-Vai e autora do livro Orixás no Terreiro Sagrado do Samba - Exu e Ogum no Candomblé da Vai-Vai (Editora Aruanda).