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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A importância de se ter referências: um passeio por memórias desilhadas

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Imagem: iStock
Diane Pereira Sousa

05/05/2021 06h00

Certa vez me disseram que para ver a ilha era preciso sair dela. Pois bem, ultimamente tenho me permitido desilhar. É preciso encontrar tempo e apoio para fazer isso. Tempo para mim é sempre uma métrica de estado da possibilidade, é aquele momento, não pode ser outro, nesse caso específico não planta erros e nem acertos, é o momento de possibilitar. Apoio é uma rede, um horizonte, você certamente vai despencar, mas não vai doer tanto, porque a gente sabe quem está ali. Eu tenho estado desilhando, me colocando do lado de fora, construindo tempo e apoio, para entender os processos de vida que me trouxeram até aqui e, sobretudo porque alguns deles ainda continuam acontecendo.

Nasci em uma cidadezinha no interior do Maranhão chamada São Bento. Eu cresci como amiga íntima da escassez apesar de estar rodeada pela abundância. Essa afirmação é como um foguete, sinto a explosão e o lançamento, mas pouco sei do seu destino. Esse espaço foi compartilhado por pessoas que sempre souberam o que comiam, quantos passos eram necessários para se chegar à escola e que a terra não é tapete, nossos pés nunca estão por cima.

Quero compartilhar as memórias que esse pequeno espaço geográfico me fez construir. Com ritos de passagens para aprender e me tornar. Vamos conversar sobre porque meu corpo de mulher negra sempre esteve indisponível para a abundância e sempre disponível para a escassez.

Ainda ouço o sinal da escola tocando às 07h20. Eu morava ali a menos de 20 metros. Minha janela era audaciosa, de frente, e minhas intenções também. Bastaram três mulheres pra alterar a ordem de como eu iria existir. Nasci em casa, minha vó é parteira, antes de conhecer a janela daquele quarto eu já conhecia sua voz. Eu já era muito antes de chegar, pena que eu só percebi isso depois. Tudo ao meu redor era "made by women", cresci achando normal tudo aquilo, até chegar à escola.

Existiam dois mundos para mim, o de casa e o da escola. Eles não davam "match". Crescer entre o mundo popular e formal é desgastante. Eu queria ser a minha vó. Olhava aquela mulher trabalhando, cantando, vivendo e pensava: eu quero ser essa mulher quando crescer. Mas a realidade é que a pessoa da minha vó não conta nos registros, ela não sai em revistas, não é famosa, o corpo dela sempre está indisponível para brilhar. Sendo assim, quem pode ser referência para nós?

Do fundamental ao magistério com apenas duas professoras negras. Nos livros meu corpo não estava, na história eu não via a raiz de Micondó. Estava vetada a me inspirar nas mulheres que me erguiam, era motivada a sonhar com outras possibilidades, que do mesmo modo eu não cabia. Mas poderia ter sido diferente. A 129 quilômetros, na cidade de Guimarães existia Maria Firmina dos Reis, a primeira romancista negra do Brasil. Uma maranhense! Eu poderia facilmente ter me inspirado nela, mas só a conheci muitos anos depois. Há um ciclo vivo e impiedoso que estabelece de forma hierárquica os lugares e direitos para pessoas não brancas, uma racialização das relações, é importante percebermos como essas relações foram se constituindo ao longo da história, boicotando os sonhos de pessoas como eu, nos levando para a margem. E, sobretudo, retirando valor da sabedoria popular.

Existia um portal no fundo do quintal da casa de minha vó. Era meu lugar preferido pra me perder. Duas bananeiras delimitavam o portal, na frente dele uns pés de boldo, duas babosas, alguns capins limão e muita terra. Eu viajei por esse portal muitas vezes, eram sempre viagens finitas, tinham tempo, mas nunca espaço, havia um mundo suficiente.

Eu poderia morar eternamente naquele pedaço de quintal, me sentia segura, do mundo de fora eu gostava pouco, não me enxergava, não queria ser encaixe, meu jeito é de gente que corre pelada, banha de rio, trepa em mangueira pra comer manga com sal e tempero seco, e gosta demais das palavras cantadas, a oralidade criou meu portal no fundo do quintal.

Quem eu era não importava muito da porta de casa pra dentro, mas do lado de fora, daquela calçada para frente, ali eu precisava ser alguém. Eu queria estar na escola, esperei com a alegria que esse tempo chegasse, mas hoje desilhando, percebo que apesar de ter construído alegrias ali, eu poderia ter sido mais. Quando olhamos ao nosso redor, pessoas como eu estão se divertindo ou trabalhando, quando assistimos a um filme que posição eu ocupo. Pode parecer irrelevante, mas alguma menina que está se construindo em algum canto desse país está olhando atentamente, parte de quem ela poderá se tornar precisa ser inspirada, ela precisa se ver, se achar, construir referências. Valorizar o trabalho de quem lhe permitiu chegar até onde ela está, mas sonhar com outras possibilidades que não a afastem de si, da sua raiz de Micondó, mas que a coloquem em estado de oportunidade e não apenas de expectativa de vida.

Nos versos de Conceição Lima "Nosso caminho, um claro itinerário: erguíamos o alfabeto do hino. Práticas, concretas, robustas, era como se elas te conhecessem, as sílabas".

Meu texto é pra dizer que é possível crescer com minha vó como referência e ao mesmo tempo construir um mundo de possibilidades em outros espaços. Por que nossos passos sempre vêm de longe, e precisamos construir nossos tempos e apoios para fortalecer nossa caminhada.