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REPORTAGEM

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É hora de quebrar o tabu e falar de assistencialismo

Tiana Lins é baiana, comunicóloga e atuante no campo do desenvolvimento social desde o final da década de 90 - Arquivo Pessoal
Tiana Lins é baiana, comunicóloga e atuante no campo do desenvolvimento social desde o final da década de 90 Imagem: Arquivo Pessoal

Tiana Lins*

19/02/2020 04h00

Em 2002, uma notícia do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) chamava a atenção com o título "Assistencialismo predomina em ação social privada". Os dados faziam parte parte da pesquisa "A Iniciativa Privada e o Espírito Público - A Ação Social das Empresas Privadas no Brasil", Ipea 2000: 54% das 462 mil empresas pesquisadas realizavam ou apoiavam atividades assistenciais.

Há quase 20 anos, informações como esta geravam reconhecimento pelo valor do investimento, mas com ressalvas. Era necessário pensar e atuar para contribuir com mudanças estruturais que fossem além do assistencialismo. A palavra "assistencialismo" chegou a ganhar um cunho negativo ao caracterizar iniciativas que mantinham o status quo sem alterar as causas do problema.

Era comum ouvir expressões como: não vamos dar o peixe e sim ensinar a pescar. E chegou até: não vamos dar o peixe nem ensinar a pescar, queremos mudar a indústria da pesca.
Retornando ao início dos anos 2000: após uma década da Constituição, o país havia caminhado alguns passos na direção de reconhecer tod@s como detentores de direitos fundamentais. Ações de assistência social estavam expandindo para além da esfera da caridade (muito característico de ações filantrópicas e religiosas) e indo para a esfera da justiça social (com participação efetiva do Estado).

Em 2003, o Brasil tinha 61,8 milhões de pobres. O número que caiu para 28,7 milhões em 2013 (dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea). Analisar os erros e acertos deste período é tema para outro texto. Mas não posso deixar de mencionar o papel de iniciativas de transferência monetária, ampliação das cotas raciais e leis como a Maria da Penha (que também fortalece a cadeia de serviços de proteção às mulheres) para uma maior garantia de direitos no Brasil.

Junto com este cenário, a filantropia no país movimentou-se na perspectiva de um investimento social mais estratégico, buscando influenciar em políticas pública, mudanças sistêmicas e menos assistenciais. Passando da valorização de conceitos como inovação, empreendedorismo, impacto e negócio social até mudanças sistêmicas, potencialização das periferias (aqui não só das grandes cidades) etc.

E estamos em 2020. Vinte anos depois, a pobreza cresce de maneira acelerada: em 2017 já tínhamos 54,8 milhões de pessoas em situação de pobreza. E, provavelmente, em 2020 o número deve estar próximo do número de 20 anos atrás: 60 milhões!

Num cenário de aumento da pobreza, a lógica seria ter as redes e os serviços de assistência fortalecidos. No mínimo, mantidos. A realidade é inversa.

O Programa Bolsa Família, que tinha fila de espera zerada em 2017, agora tem 1 milhão de famílias em espera. Em 2019 eram destinados R$ 32 bilhões. Em 2020, serão 29 milhões. Os pagamentos para serviços de atendimento às mulheres em situação de violência recuaram de R$ 34,7 milhões para apenas R$ 194,7 mil de 2015 para 2019. Menos recursos e serviços sucateados.

Em paralelo, dados do censo GIFE de 2018 demonstram que entre 2016 e 2018: sobe de 7% para 10% a parcela de financiadores que pretende diminuir o apoio a organizações da sociedade civil - OSCs nos próximos anos; cai de 18% para 10% a parcela de investidores que tem como estratégia apoiar OSC que influenciam políticas públicas e realizam controle social; Mas cresce a parcela que provê auxílio financeiro independente de projetos/ programas a OSCs (de 24% para 30%).

Trabalhando desde o final da década de 90 no campo do desenvolvimento e investimento social, às vezes acho que inovar mesmo na filantropia brasileira é simplesmente investir no que é necessário. Não onde se deseja. Iniciativas assistenciais e de contribuição para mudanças estruturais precisam caminhar juntas. Não é possível aprender a pescar com fome. Nem melhorar a pesca apenas dando o peixe.

Avanços e recuos fazem parte da história. Não estamos no mesmo lugar que estávamos no ano 2000. Experiências bem sucedidas, equívocos e aprendizados desde 1988 fazem, agora, parte do nosso repertório. Como podemos nos movimentar daqui em diante para sermos resilientes diante dos desafios, sábios diantes das propostas e empáticos diantes das necessidades?

*Tiana Lins é baiana, comunicóloga e atuante no campo do desenvolvimento social desde o final da década de 90. Nos últimos cinco anos, representou a Fundação Womanity no Brasil estabelecendo um modelo filantrópico de investimento em desenvolvimento institucional de organizações sociais. Morando no interior da Bahia atualmente, acumula experiência em direitos humanos (principalmente equidade racial, gênero e juventude), desenvolvimento econômico e educação.