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REPORTAGEM

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Pessoas negras que não aprenderam a falar de amor

Paula Rodrigues - Arquivo pessoal
Paula Rodrigues Imagem: Arquivo pessoal

Paula Rodrigues*

Repórter de Ecoa

20/11/2019 04h00

O bloco de notas do meu celular virou um cemitério de sentimentos. Abri agora mesmo o aplicativo para reler o que anotei durante este ano. Lá encontram-se frases enterradas como: "conhecer gente como você é uma das coisas mais gostosas para fazer em um sábado pela manhã". Inventei combinações cabulosas de letras na tentativa de expressar pela escrita algumas coisas que não saem pela oralidade. Confesso que só comecei a anotar tudo porque, certa vez, minha psicóloga disse que eu não tinha aprendido a falar de amor.

E não para por aí: você não sabe porque sua mãe não te ensinou. E ela não sabe porque a mãe dela não a ensinou. E assim vai até chegar a ancestrais que você nem sabe o nome. Foi o que disse minha psicóloga, pelo menos. O argumento dela era forte: em comum, todas são mulheres negras que pouco foram amadas em voz alta.

Que tipo de amor a mãe de minha bisavó, uma negra escravizada no interior da Bahia, recebeu em vida? Me questionei. Qual repertório sentimental ela conseguiria deixar de herança para as gerações mais novas? Para registro histórico, nem o nome dela nós sabemos. Virou apenas mais uma negra escravizada. Já minha avó, criada "pelos outros", como minha mãe me disse recentemente, sempre me pareceu fria demais, dura demais.

Duas coisas sempre me vêm à cabeça quando penso nisso tudo: a primeira é uma citação da escritora bell hooks, que diz: "Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público". A segunda é de uma imagem de um casal preto se beijando; ao lado, aparecem os dizeres "Reaja à violência racial: beije sua preta em praça pública".

Assim, comecei a pensar sobre o racismo que come pelas beiradas, o que te adoece sem você saber por que está doente. O que moldou as relações de afetividade de gerações de mulheres negras, pelo menos em minha família. Aquele que me fez pensar que todos os sentimentos devem ficar em segundo plano. Racismo não é só chamar uma pessoa preta de macaco ou falar que nós temos cabelo ruim. Racismo também é não nos perceber como corpos que merecem amor.

Falar sobre sentimentos é uma arte milenar, eu acho. Existem incontáveis músicas sobre amor. Os poemas mais bonitos que já li descrevem perfeitamente o que os autores sentiam à época. E eu aqui, caçando palavras no teclado desse computador para não parecer boba, tentando matar essa sensação de que é perda de tempo falar sobre o que eu sinto.

Cada vez mais me convenço de que falar sobre sentimentos, para uma pessoa preta, é também uma forma de resistir. Pelo menos para mim, é preciso ter muita coragem para dizer em voz alta um: "olha só, é isso aqui que eu sinto e ponto final" em um mundo que todo dia tenta nos transformar em tudo, menos humanos.

Por isso, dentre mil e uma coisas que eu gostaria de mudar relacionado ao povo preto no Brasil, uma delas é a forma como muitas vezes nos calamos quando o assunto é o que sentimos. Para além de muita luta e resistência, nós ainda somos muita coisa guardada que precisa ser colocada para fora.

* Paula Rodrigues, 26, saiu da Bahia diretamente para a periferia da zona norte de São Paulo. Fez jornalismo por teimosa, trabalhou na Agência Mural e hoje é repórter de Ecoa.