Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Distopia é uma falência ética
Está cada vez mais comum a sensação de que chegamos no ponto de virada para a distopia.
Por ser uma história que contamos tanto, a distopia tecnológica já transcendeu o nicho da ficção científica, povoando de modo insistente nossa imaginação: algo dá errado nas máquinas que criamos e isso desencadeia um cenário de fim do mundo. Corporações fora de controle, armas biológicas, epidemias mortais, contaminação industrial planetária, guerras em nome de poder e lucro.
Há também a clássica invasão e dominação alienígena, geralmente em nome da extração de recursos naturais que já foram esgotados em algum outro lugar — apesar de vir de outro planeta, esse sistema econômico parece 100% terrestre.
Ou então, uma inteligência artificial poderosa chega ao insight de que a humanidade é um tipo de praga a ser exterminada — a roupagem é tecnológica, mas essa culpa coletiva paira no ar desde o Velho Testamento.
Outra variante é a distopia totalitária, em que uma facção de fanáticos fundamentalistas se aproveita da vulnerabilidade exposta por alguma crise para se instalar no poder, com a promessa de que apenas um recrudescimento desumano trará segurança contra a suposta ameaça.
Como muitas pessoas, sempre fui fascinado por essas histórias. Elas não são exatamente sobre o futuro, mas refletem o presente de uma forma que a abordagem direta não conseguiria. A maioria evitaria a discussão — considerando-a política demais — sobre essas máquinas horrorosas a quem demos nascimento.
O coração das melhores histórias desse tipo não é sobre a mecânica ou técnica de destruição: que tipo de tecnologia, a quem culpar, o que deu errado etc. A grande questão é: essa destruição faz parte de nossa natureza? É inevitável? Independente de a resposta ser sim ou não, como lidar com isso? O que pode ser feito? Como não se render? Como regenerar e reconstruir?
Uma ficção cativante que estou lendo -- "Walkaway" (2017), de Cory Doctorow -- explora bem essas questões. Cory trabalha a ideia de que uma distopia não se refere centralmente a um sistema ou tecnologia destrutiva, mas sim ao modo como as pessoas reagem, conforme
escreveu na Wired:
"Aqui está como você pode reconhecer uma distopia: é uma história de ficção científica na qual o desastre é seguido por uma violência brutal, impensada. Aqui está como criar uma distopia: convença as pessoas de que, quando o desastre chegar, seus vizinhos são seus inimigos, e não seus salvadores, com quem há responsabilidade mútua. A crença de que, quando ficar tudo escuro, seus vizinhos virão com uma calibre 12 -- em vez de trazerem o que há no congelador para vocês fazerem um churrasco antes que tudo estrague -- não é apenas uma profecia que se auto-realiza, é uma narrativa armada. A crença de que pessoas ao seu redor têm uma natureza predatória, meramente suprimida, é a causa da distopia, é a crença que transforma meras crises em catástrofes."
Discussões como estas são assustadoras porque indicam: de certo modo, isso tudo é onde já chegamos.
Há também um outro cenário que está começando a emergir nessas histórias sobre o fim. "Em meio ao caos e destruição galopante, é preciso acreditar que está tudo bem. Que, apesar de tudo, o progresso vence, a inovação tecnológica salva. Vamos difundir essas narrativas. Melhor mesmo é cuidar de si. O narcisismo precisa ser multiplicado. Fama, sucesso, riqueza. É isso o que deve ser buscado. E quanto mais entretenimento, melhor. Assim, não é preciso enxergar o mundo. O aumento na exploração é um avanço. Organização coletiva é um processo falido. Dispositivos eletrônicos onipresentes ajudam. É importante enfatizar a supremacia sobre tudo mais, incluindo humanos 'diferentes' ou a própria natureza. Inimizade ideológica é fundamental. Acreditem: competição e subjugamento são forças naturais."
A distopia do presente compete com as projeções fictícias mais delirantes.
Nesse cenário, também é preciso limitar a imaginação de um mundo melhor. "Qualquer possível solução deve se conformar com o sistema atual. Precisamos mesmo é de mais industrialização, crescimento do PIB, de 'desenvolvimento sustentável'. Nossa salvação será a própria tecnologia."
A solução predominante que costuma se contrapor à distopia tecnológica é... Surpresa: a utopia tecnológica! Ou seja, superaremos A Máquina com mais máquinas.
Eu sei. Frequentemente, o que escrevo acaba tendo esse tom angustiante. Mas não é por acaso. Creio que pode ser completamente estéril ficar imaginando soluções quando nossos corações e mentes ainda estão amarrados, colonizados. Antes de imaginar como escapar é preciso uma lucidez muito clara sobre as correntes e a prisão. Sem isso, ficamos apenas repetindo os padrões que deram origem e sustentam tudo isso. Há aquela clássica frase atribuída a Albert Einstein: "Não podemos solucionar nossos problemas com o mesmo processo mental que usamos quando os criamos."
Sobre isso, vou fechar com um trecho de outro livro ótimo: "Hospicing Modernity", da brasileira Vanessa Machado de Oliveira Andreotti, da Universidade de British Columbia, no Canadá. Aquilo que eu costumo chamar de "sistema", ela chama de "modernidade", nessa obra reveladora sobre uma urgente descolonização mais interna, necessária no processo para assistir gentilmente a morte (é a isso que se refere o termo "hospicing") desse sistema dentro de nós. Vanessa escreve:
"A modernidade nos condiciona a acreditar que, para mudar a realidade ou nossos modos de ser, primeiro precisamos imaginar como será essa mudança, para depois traçar um plano e agir para atingir esse objetivo. É por isso que muitas pessoas me perguntam: se não for a modernidade, então o quê? Costumo dizer que essa é uma questão lógica - dentro da lógica da modernidade. Eu alerto as pessoas que começam com essa pergunta que elas não vão gostar da minha resposta, que é: só poderemos imaginar algo genuinamente diferente se, primeiro, suspeitarmos daquilo que desejamos e somos capazes de imaginar dentro da modernidade."
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