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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

É proibido falar de colapso

Dr. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) em "Não Olhe para Cima" - Niko Tavernise/Netflix
Dr. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) em "Não Olhe para Cima" Imagem: Niko Tavernise/Netflix

09/01/2022 06h00

Não é de hoje, mas há uma negação generalizada da dor, de nossa vulnerabilidade e degeneração. Em momentos de transição radical — para melhor ou pior, como agora — isso fica bem óbvio.

Como monge budista, costumo lidar com uma situação que ilustra bem essa situação. Muitas pessoas que ouvem sobre o budismo mais tradicional viram a cara, saindo com a impressão de que se trata de uma religião ou filosofia pessimista: a vida nada mais é que sofrimento e a felicidade residiria num plano espiritual além.

Na verdade não é isso, mas o ponto aqui não é esclarecer esse mal-entendido, e sim ilustrar esse impulso básico: quando se fala de dor ou sofrimento, principalmente de uma degradação mais estrutural e sistêmica em nossas vidas, ninguém quer ouvir, principalmente se fizer sentido ou parecer verdade. É como se vivêssemos numa eterna negação sobre os aspectos negativos de nossa existência.

— Está se sentindo triste? Tem esse antidepressivo.

— Ficou muito agitado? Um calmante vai ajudar.

— Parece que a vida não tem muito sentido? Vamos beber e festejar.

— Sofrendo com a perda, né? É duro, mas... você viu o anúncio daquele carro elétrico?

— Essa destruição toda do ambiente não está legal... Ah, viu no Insta minhas fotos na praia? E o novo filme da Marvel?

Não é por acaso que todas essas fugas giram em torno de consumir ou comprar (e mostrar) algo e, obviamente não são a solução para a dor, medo, doença, morte e destruição que integram nossa existência como elementos-chave. Vamos ficar fugindo pro resto da vida? Fingir que não existe só aumenta a angústia do próximo confronto com a realidade.

Não só não falamos do colapso, mas evitamos quem fala. É por isso que gostei tanto de "Não olhe para cima". Já disseram tanto sobre esse filme que fico com preguiça de comentar. Mas há um fenômeno importante aí, então vou dar meus dois centavos, como dizem os estadunidenses.

Não imaginava que um filme exatamente sobre essa negação de nossa realidade desastrosa, de proporções apocalípticas, pudesse virar um fenômeno popular tão cedo. Isso mostra que há abertura entre o público em geral para quebrarmos o tabu, e olharmos de frente nossa autodestruição como civilização. Está tudo aí, bem na nossa cara, se empilhando há décadas. Não vê quem não quer.

Desde que me conheço por gente essa sensação de que o mundo está piorando só cresce. Obviamente que não estou sozinho. Eu adoraria sim que fosse só uma impressão, como querem nos fazer acreditar os ideólogos neoliberalistas ou os pregadores do dogma do progresso. Mas os fatos estão aí. Se para mim, que já passei dos 40, não é fácil, fico imaginando o desespero dos mais jovens e informados, que já nasceram dentro desta corrida degenerativa.

Então tem o sucesso desse filme, que aponta o senso apocalíptico pairando coletivamente e que a mídia em geral se especializou em ignorar e negar frontalmente. Mas será que ele passa alguma mensagem realmente útil?

No norte global, onde circulam razoavelmente bem as informações sobre a crise ambiental planetária em que nos encontramos, a maioria do público entendeu o filme. Os produtores e atores nunca esconderam que a obra é sobre a emergência climática, mas preferiram não abordar esse tema de frente para não afastar o público. Entre roteiristas de Hollywood, uma regra clássica é não retratar temas contemporâneos delicados; é preciso esperar algumas décadas para que filmes sobre períodos convulsivos possam ser apreciados (será que teremos esse tempo no futuro?).

Já aqui no Brasil teve gente que ficou assustada é com o meteoro! Vi até discussões sobre possibilidades de colisão etc. E, obviamente, não foi possível deixar de relacionar os personagens com a atual farsa político-econômica que vivemos e com a desgraça da pandemia (que, no final, é apenas um pequeno sintoma desta crise). Então, por aqui, a mensagem planejada no filme passou meio em branco.

"Não olhe para cima" é o melhor filme já feito sobre o colapso climático de nossa civilização e, no entanto, não fala dela! É um filme sobre negacionismo que, no final, também nega, pois não pode discutir abertamente o tema da emergência climática, sob risco de fracassar. Essa negação mais sutil, em que evitamos assuntos desagradáveis para não desagradar, também é o que está nos matando. Enquanto ficamos nos adaptando para o que as pessoas querem ouvir, a devastação se espalha.

Ouvi também reclamações do tom catastrofista do filme, de que isso levaria a um tipo de paralisia. Apesar de realmente haver essa tendência quando reconhecemos uma destruição inevitável (ou quase), basta um pouco mais de atenção e reflexão para neutralizar essa apatia. Por exemplo, os novos movimentos climáticos — como os disparados por Greta Thunberg ou o Extinction Rebellion — surgiram exatamente dessa constatação crua, sem maquiagem ou desvio, do avançado estágio de nossa degradação. Foi o reconhecimento traumático de um nível de destruição radical que, espontaneamente, deu nascimento a uma abordagem mais direta e efetiva para o ativismo ambiental.

Então, a comunicação sem rodeios sobre nosso rumo direto ao colapso climático global, ou sobre a atual sexta extinção em massa — que, na verdade, é a 1ª Grande Aniquilação, pois está sendo ativamente provocada — não precisa ser paralisante. Pode ser justamente o contrário: a faísca que inspira e ativa os processos de mudança e regeneração.

Li recentemente outra pesquisa apontando que as pessoas evitam notícias ruins sobre meio ambiente, obviamente. A solução-padrão generalizada, adotada como reflexo impensado?

— Vamos então falar de coisas boas, histórias inspiradoras, gente que faz, exemplos que deram certo?

Ótimo, nada contra. Mas se fixar nisso num momento em que nossas vidas estão em perigo, na verdade pode intensificar o problema. No fundo, essa lógica é parecida com a da busca por audiência, por lucro. Oferece-se para consumo aquilo de mais baixo, pois é o que as pessoas querem, é o que vende. Por que há tanta desinformação, ódio e negacionismo na internet? Por que dá lucro. É por isso que soa meio estranho um grande meio de comunicação criticando o Facebook? E enquanto o lucro for a meta suprema, é isso o que teremos (mas se alguém reclamar, depois que o estrago já está feito, aí entram as estratégias de marketing).

Ao continuarmos nos desviando da realidade mais óbvia que é a falência do modo como produzimos e consumimos (e, no final, vivemos e pensamos), ou por pura negação do desconforto ou pela busca de respostas instantâneas, populares e lucrativas para esta crise existencial, e o mundo, como fica?

Fica assim, do jeito que está e onde continuaremos afundando, se não aprendermos como superar essa infantil negação da dor, da dor que é parte inseparável da teia de nossa existência. Se não olharmos e tratarmos este abcesso de frente, abraçando o desconforto, ele continuará infeccionando e se espalhando, enquanto fingimos que não existe.

("Ué, acabou?! Cadê as sugestões de soluções? E as histórias positivas, inspiradoras?" Já escrevi extensamente sobre isso nesta coluna, os artigos estão listados abaixo. Até a próxima!)