Topo

Mente Natural

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Horror hipercapitalista

scyther5/iStock
Imagem: scyther5/iStock

12/12/2021 06h00

"É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo."
Mark Fisher

Virou um tipo de tabu tentarmos sequer pensar em um sistema diferente do atual capitalismo, como resume a frase acima, que já se tornou um meme pré-apocalíptico, do influente britânico k-punk, como Fisher era conhecido na web nos anos 2000.

Como tudo que se entranha tão profundamente em nossas vidas a ponto de se misturar com a realidade, o atual sistema político-econômico é difícil de definir. O que entendemos quando ouvimos a palavra capitalismo? Se refere à possibilidade de cada um guardar dinheiro? É sobre comércio? É o oposto de socialismo?

É por esse tipo de confusão que evito essa palavra. Não sou socialista e abomino ditaduras, mas se eu criticar O Capitalismo a reação automática é imaginarem que estou defendendo a abolição da propriedade privada, ou a transformação do mundo num tipo de Cuba.

O atual capitalismo não é sobre a loja de fulano ou o escritório do sicrano. Atividades comerciais ou empreendedorismo já existiam milênios antes dele. É sobre nada mais importar além do lucro, e todas as destrutivas consequências dessa fixação doentia.

Uma pessoa "capitalista" é alguém que vive da exploração de capital, como um investidor ou dono de propriedades e empresas. Então, um governo capitalista, segundo essa definição clássica, é aquele que favorece essa pequena fatia da população. Não é estranho que o capitalismo que a maioria de nós diz apoiar tenha como objetivo favorecer apenas uma minoria de pessoas muito ricas?

Quando elogiamos o capitalismo, imaginamos que estamos defendendo qualidades como a liberdade, o desfrutar de bens, a inovação etc. Essa é a imagem que é vendida e compramos. Na prática, um sistema voltado para o enriquecimento contínuo dos, no mínimo, milionários é muito mais prejudicial do que imaginamos. Basicamente, ele se refere a dar cada vez mais vantagens para corporações operarem, com o mínimo de obrigações sociais ou ambientais, por exemplo, rumando à sonhada utopia neoliberal da ausência completa de qualquer compromisso (com o bem alheio) ou limitação (para os lucros).

Basta olharmos em volta para saber quais os efeitos disso. Há o colapso natural (provocado pela crise climática e pela extinção em massa de espécies), os subempregos de aplicativos, a mercantilização da saúde humana em plena pandemia...

Conforme mencionou Umair Haque em um de seus artigos, apenas o aumento da fortuna durante a pandemia de um grande bilionário seria suficiente para vacinar toda a população do planeta contra a covid e, em tese, acabar com a proliferação em massa do vírus. Mas isso não apenas não acontecerá, como ninguém nem mesmo considera essa situação estranha ou anormal. O normal é alguém rico poder resolver um mal terrível global — sem nem ao menos deixar de ser bilionário — e jamais fazer isso, valendo mais explorar seus funcionários a ponto de eles precisarem urinar em garrafas pet. "É assim que as coisas funcionam."

Outro exemplo é a atual emergência climática. O investimento que seria necessário para os países em desenvolvimento fazerem a transição para energia limpa, abrindo assim caminho para revertermos a direção rumo ao colapso climático de nossa civilização, é bem pouco, comparado às fortunas das grandes corporações (muitas delas sendo inclusive as grandes responsáveis por essa crise). Mas esse dinheiro jamais virá. "Essas não são as regras do mercado. Não é assim que as coisas funcionam."

Neste tipo de mundo, empresas e corporações têm os mesmos direitos de seres humanos, legalmente. Já o mundo natural, como rios ou florestas, não têm os mesmos benefícios. Muito menos os animais não humanos, a quem até a senciência, ou a capacidade de sentir, é negada.

Já que uma megacorporação legalmente é como um ser humano, que tipo de pessoa ela seria? O documentário "A Corporação" (2003) responde essa pergunta. Levando em consideração o modo como essa empresa-modelo trata as pessoas e se insere na sociedade, ela tem exatamente as características psicológicas de um psicopata — por exemplo, egocentrismo, ausência de empatia e remorso, e comunicação enganosa.

No mundo em que vivemos, a Amazon — com todas suas controversas práticas trabalhistas e corporativas — continua superprotegida pela lei e governos. Já a Amazônia segue sendo destruída.

Essa é a nossa ética de enriquecimento individual, ou acumulação de capital. E ela acaba nos contaminando mesmo individualmente, já que o atual sistema político-econômico está na raiz não apenas das principais doenças da humanidade como um todo, como desigualdade e suas violentas consequências. Traços pessoais hoje tão socialmente aceitos como narcisismo doentio ou competitividade predatória são os frutos por excelência do capitalismo neoliberal. Sem falar na explosão das últimas décadas de distúrbios mentais como depressão e ansiedade no mundo "desenvolvido", que coincide exatamente com a consolidação hegemônica do hipercapitalismo.

Como seria um mundo pós-capitalista permanece uma questão aberta. Como já mencionei, não considero alternativas socialistas, cuja implementação no mundo falhou tanto quanto o sistema atual.

Há diversas propostas promissoras e inspiradoras como economia donut, bem viver, democracia direta… Mas a grande questão é que ainda há pouco espaço sequer para a discussão de alternativas. Como diz o meme que abre este texto, um mundo sem capitalismo se tornou inconcebível. Não por ele ter se mostrado eficiente para a humanidade — pelo contrário, é uma falência horrorosa completa. Mas sim por pura lavagem cerebral constante, subliminar e onipresente. Não escolhemos esses valores, este tipo de mundo. Jamais faríamos isso, se pudéssemos ver a verdadeira face do sistema.

Então, antes de tudo, precisamos reconhecer coletivamente a decadência, a falha épica de nossa civilização. Sem maquiagem, desvio ou repaginação. Olhar o horror de frente abre espaço para começarmos a imaginar um mundo além desta prisão.