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OPINIÃO

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O poder de destruição do negacionismo climático

Indígenas protestam contra presidente Bolsonaro e pela demarcação de terras em frente ao Planalto, em Brasília - Amanda Perobelli/Reuters
Indígenas protestam contra presidente Bolsonaro e pela demarcação de terras em frente ao Planalto, em Brasília Imagem: Amanda Perobelli/Reuters

Emersom Karma Konchog

29/08/2021 06h00

Devido ao mais recente relatório climático da ONU,se fala cada vez mais sobre "mudança climática". Esse é o termo científico usado para as alterações no clima ao longo dos bilhões de anos do planeta. Já que essa é uma expressão neutra e, antes, falávamos "aquecimento global" — que se refere à ação humana — por que houve essa mudança de terminologia?

Tem gente até que acredita que isso seria uma conspiração esquerdista para tentar incluir outros fenômenos, como ondas de frio ou furacões, na mesma categoria do aquecimento global, e assim criar mais alarme sobre as consequências do "sistema capitalista".

Na verdade, houve sim "conspiradores", mas não eram comunistas. A substituição de "aquecimento global" por "mudança climática" na opinião pública começou em 2002, durante o primeiro mandato de George W. Bush, como uma estratégia do partido republicano para semear dúvidas sobre o papel humano desse aquecimento. E deu tão certo que até hoje todos falamos "mudanças climáticas" ao nos referirmos aos efeitos desastrosos de nosso modo de produção e vida. Frank Luntz, um assessor especialista em comunicação de massa, foi quem recomendou essa mudança no vocabulário político, ao reconhecer que a agenda ambiental era onde o governo Bush mais perdia, aos olhos da sociedade. Era então preciso comunicar a suposta naturalidade da alteração do clima e inculcar incerteza sobre a ciência. Quase 20 anos depois ainda escutamos alguém argumentando: "Mas o clima muda o tempo todo. Há um cientista de uma universidade que diz isso e aquilo...".

Curiosamente, Luntz se arrepende amargamente de ter arquitetado essa estratégia de desinformação e hoje oferece sua especialidade para a causa ambiental.

Apesar de ficar cada vez mais óbvia a falácia desse tipo de negacionismo — mesmo conservadores estão mudando o discurso — há uma outra forma de negação hoje bem dominante. Ela opera de modo bastante sutil, mas seus efeitos são igualmente devastadores.

É o que o filósofo Quassim Cassam chama de "negacionismo comportamental". Funciona assim: entendemos a ciência e a gravidade da atual emergência ambiental, por exemplo, mas isso não provoca nenhuma mudança de atitude. Continuamos como se nada estivesse acontecendo. Isso se reflete tanto em nossas vidas, como no governo, corporações e mídia.

Por exemplo, apesar de todos os alertas, o Brasil vai continuar investindo massivamente na produção de petróleo. Ou então há o pacotão antivida que está para ser aprovado no Congresso, incluindo os projetos de lei da grilagem, do garimpo em terras indígenas, do relaxamento do licenciamento ambiental, da restrição das demarcações de terras indígenas...

Uma variante desse "negacionismo comportamental" também é muito forte na mídia. Não é impressionante que uma ameaça às sociedades humanas deste nível ganhe tão pouco espaço no noticiário? Por exemplo, a cobertura televisiva da crise climática em todo ano de 2020 foi quase a mesma do que o noticiário em um único dia sobre a viagem espacial do dono da Amazon. E isso nos EUA, onde o debate ambiental está muito mais avançado do que no Brasil. Lá, grandes meios de comunicação como a revista Time, jornal New York Times, ou até bastiões do mercado financeiro como a Bloomberg News fazem coberturas sobre emergência climática que, no Brasil, seriam tachadas de "ativistas".

Recentemente, na Europa (principalmente Inglaterra) começaram protestos climáticos em massa do movimento Extinction Rebellion (que inclusive uniu vozes ao grande protesto indígena em Brasília).

Já por aqui, estamos bem distantes desse nível de conscientização e mobilização. No entanto, é uma questão de tempo para esse debate chegar com a força necessária. Mas para isso a evolução do noticiário é essencial. Exige editores corajosos, que percebam a importância de um assunto tão negligenciado quanto o colapso natural, que resultará em perdas humanas e destruição massivas, se tudo continuar como sempre.

Um exemplo dessa audácia é o jornal inglês The Guardian, que em 2019, alterou seu manual de redação assim:

"No lugar de 'mudanças climáticas', os termos preferidos são 'emergência climática', 'crise (ou) colapso climático' ". A editora-chefe Katharine Viner comentou: "Queremos garantir que estamos sendo cientificamente precisos, ao mesmo tempo que comunicamos de modo claro aos leitores que este é um tema extremamente importante."

Como eu trabalhava como jornalista, sei como funcionam as redações, como um veículo determina o que o outro vai noticiar e vice-versa. Mas alguém precisa dar o passo adiante e sair desse sutil círculo de negação. Essa demora para acordarmos como sociedade acaba saindo extremamente caro, em vidas.

No final, a atual emergência ambiental é um problema de comunicação, de como contamos essa história. Como diz a jornalista e ativista Naomi Klein:

O fato de que alguém imagina que a estabilidade dos sistemas planetários que sustentam toda a vida pode ser separada da Economia ou da Saúde — ou de qualquer coisa no final — é um sintoma do orgulho arrogante mecanicista que nos colocou nesse caos. Se nosso clima entrar em colapso, tudo mais entra, e isso deveria ser o início de todas as discussões sobre o assunto.