Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Por uma economia humana
O novo presidente estadunidense está reacendendo o debate sobre as crises climática e ecológica: fala-se muito em investimentos contra o desmatamento, zerar emissões, crescimento "sustentável" etc. Mas um ponto central permanece intocado: como repensar nosso modo de consumo e produção? Afinal não é em nome disso que despejamos na atmosfera gigatoneladas anuais de gases do aquecimento e destruímos o ambiente em que vivemos?
É "sustentável" continuar com o inchaço no lucro das corporações — no final, é a isso que "crescimento da economia" se refere — mas agora com baterias de lítio, painéis solares e tecnologias de captura de carbono? Não é por acaso que o atual modelo, de um crescimento perpétuo baseado em recursos escassos, seja chamado de cancerígeno — o que na natureza cresce indefinidamente arruinando tudo em volta?
Apesar de urgente, a transição para energia renovável não resolve o problema da incessante busca por lucro, baseada em destruição e consumismo. Então, o atual beco sem saída ambiental é uma chance de ouro para acordarmos e reconhecermos a insanidade do sistema econômico dominante. Atualizar o atual modelo com novas máquinas é apenas nos desviarmos para outro beco, com uma parede intransponível um pouco mais adiante.
Desenvolvimentismo
Há umas duas décadas, economistas ainda se animavam com o sonho de uma "economia desmasterializada", ou seja, que não dependesse de recursos materiais para crescer. Algumas estatísticas até sugeriam que isso estava acontecendo: alguns países apresentavam crescimento financeiro com redução da degradação ambiental. Mas a causa desse fenômeno logo apareceu: a terceirização da produção, que também transferiu a contaminação.
Não é à toa que a China hoje é o país que mais emite gases do aquecimento. Mas isso é feito em nome de quem? De todos nós, consumidores do mundo. E, obviamente, esse dano ambiental igualmente se dissemina por todo o planeta, afetando não apenas humanos.
Também se imaginava que a digitalização da economia resolveria nossos problemas. No entanto, hoje se sabe que só a energia da rede de computadores-servidores que sustenta a internet contamina tanto quanto uma das indústrias mais poluentes, a aviação.
Com raras exceções, a atual discussão em torno de soluções evita a todo custo a ideia de que "desenvolvimento sustentável" é uma contradição semântica, dentro do atual modelo econômico.
Absurdos
Um exemplo do absurdo da lógica dominante: o Brasil é o quinto país que mais emite gases do aquecimento, principalmente devido à agroindústria e ao desmatamento (que é outra consequência dessa indústria). Como se trata de um setor altamente lucrativo, sua importância para o crescimento da economia é crucial — há até campanhas na televisão tentando nos convencer dos benefícios do agronegócio.
Boa parte da produção é exportada, por exemplo, para virar ração de animais. Então quem se beneficia realmente desse lucro, além das corporações e políticos associados? Quem sai perdendo com esse rastro de destruição?
Em sua origem, a palavra economia significava algo como "cuidados com o local onde vivemos". Nesse sentido, há algo de econômico no que estamos fazendo? Parece bem o contrário: somos a única espécie que extrai recursos do ambiente natural e devolve apenas destruição e morte, em escala ainda maior.
Alternativas
O pavor em relação a alternativas ao atual modelo é exagerado. Não há conspiração comunista. Há sim quem lucre bastante se acreditarmos nisso. Substituir a atual destruição do sistema desenvolvimentista não é um projeto da esquerda, mas sim uma questão de sobrevivência da humanidade.
Entre as alternativas ao modelo atual, a "economia donut" é a que tem alcançado maior penetração. Basicamente, se refere a uma economia focada na "prosperidade humana", sem ultrapassar tetos ecológicos e sem negligenciar necessidades básicas — exatamente os dois pontos em que o atual sistema é campeão. Quando isso é colocado em um gráfico, o formato é um círculo como um donut. Essa abordagem já está sendo implementada em lugares como Amsterdã, e diversas outras comunidades pelo mundo.
Outra alternativa, com grau bem menor de aceitação é o "decrescimento", que baseia a regeneração das sociedades e seu ambiente em uma redução na expansão das corporações. A rejeição completa à simples menção dessa palavra acaba sendo um sinal de como o crescimento do PIB — índice que não leva em conta nem coisas básicas como trabalho doméstico, ou então a degradação humana — se tornou um dogma fundamentalista, expondo também o domínio da lógica do lucro.
Fica difícil imaginar uma maneira de sairmos do atual curso rumo ao abismo, se não reconhecermos o modo como nossas sociedades terminaram reféns de corporações e políticos associados.
É notável que usemos a palavra 'economia' para descrever um sistema organizado em volta da geração perpétua de crescentes níveis de consumo e excessos extremos para os ricos. Não há nada de 'econômico' nisso. ... A 'economia' no final é a nossa relação material uns com os outros e com o restante do mundo vivo. Queremos que essa relação seja baseada em extração e exploração? Ou queremos que ela se baseie em reciprocidade e cuidado?
Jason Hickel, antropólogo econômico, autor de "Degrowth".
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