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Mari Rodrigues

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mais um papo reto sobre a linguagem neutra

Arte UOL
Imagem: Arte UOL

10/04/2021 06h00

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Hoje eu gostaria de falar especialmente com você, estudante de Letras. Isso mesmo, você que estuda os fenômenos da linguagem e que, como eu, deve acreditar que a língua é o registro de um momento histórico e político de quem a fala.

Na última semana, uma notícia falsa se espalhou, sendo compartilhada como piada nos grupos em que participo. A tal "notícia" dizia que 87 mil redações do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, foram anuladas devido ao uso de pronome neutro. Pessoas mal intencionadas mais uma vez utilizaram este expediente para ridicularizar a linguagem neutra e quem a usa.

Eu preciso dizer: você que faz piada disso nada mais é do que babaca!

Por quê?

A linguagem neutra nada mais é que uma forma de neutralizar o gênero em nossas conversas, de forma a abarcar os mais diversos gêneros na fala (para além do binário feminino-masculino). É muito mais que o mero uso de um X ou de um E como sufixo. É todo um exercício de quebrar a convenção de tratar as formas masculinas da palavra como universais e pensar em formas de dizer a mesma coisa sem pender para essa convenção.

O colega Tony Marlon trouxe uma discussão bem interessante na semana que se passou: a mídia procura incluir a individualidade do gênero feminino na discussão, quando também quebra a convenção de universalizar o masculino. Ao momento em que consideramos que não só o gênero privilegiado na sociedade merece ser invocado, revolucionamos lentamente a linguagem, escancaramos nossos próprios preconceitos e escandalizamos o conservadorismo.

Voltando à discussão da linguagem neutra, trago novamente o fato de que a língua é representação do momento histórico e político de quem a fala. E não está num pedestal intocável, livre de interferências. Se pensássemos que a Academia Brasileira de Letras fosse a única responsável por mudanças na língua, ignoraríamos todas as suas variações, que são capazes de mudar, quem diria, a própria norma padrão.

"No mundo non me sei parelha, mentre me for como me vai, cá já moiro por vós - e ai, mia senhor branca e vermelha". Sempre me lembrarei da "Cantiga da Ribeirinha", de Paio Soares de Taveirós, considerada a primeira cantiga de amor em língua portuguesa, datada do final do século XII. Seria no mínimo estranho, pra não dizer ridículo, se alguém, no século XXI, falasse um português igual ao dessa cantiga.

Porque a língua mudou tanto que a norma padrão se moldou a várias adaptações que o povo falante de português fez à sua forma de falar. O mesmo pode se dizer dos tão polêmicos pronomes neutros. Um dia, sabemos que não agora, esta construção pode ser aceita pela norma padrão. O que não implica em ridicularizá-la.

Termino com um apelo a você que estiver lendo, e mais especificamente a você, estudante de Letras: antes de vir com quatro pedras atirar em quem defende uma linguagem inclusiva, procure entender as razões que levam a uma busca pela neutralidade de gênero na fala. Estude com mais afinco esses fenômenos, sem fazer um pré-julgamento sobre a admissibilidade ou não dessa construção. Procure desconstruir a noção de morfema zero no masculino.

Tratar como verdadeiras ou como piadas notícias falsas como a que circulou sobre a redação do Enem não lhe torna alguém que defende a língua da deterioração, e sim alguém com muitos preconceitos.

Repararam que em nenhum momento utilizei pronome neutro e ainda assim, não universalizei formas masculinas da palavra? Linguagem neutra é sobre isso. Não vai fazer cair sua mão, nem queimar seus olhos.