Topo

Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mulher, esposa, companheira: da palavra que falta para nomear um amor

Pintura de homem entregando carta de amor para mulher, de Carlos Julião - Domínio Público/ Creative Commons/ Wikimedia Commons
Pintura de homem entregando carta de amor para mulher, de Carlos Julião Imagem: Domínio Público/ Creative Commons/ Wikimedia Commons

Colunista do UOL

22/04/2023 06h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Amo minha mulher, mas não posso e não quero dizer que amo minha mulher. Já tive ressalvas ao verbo amar, essa ideia que alguns esperariam conter o absoluto e a infinidade, esse termo em que culminariam todos os afetos do dicionário, e que no entanto não contém tudo, e nele não culmina nada. Mas agora não é dessa ressalva que se trata. Não posso dizer que amo minha mulher porque aqui é a palavra mulher que se torna problemática. Tanto já se disse e se pensou sobre a categoria mulher, tantas lutas já foram bem travadas por sua emancipação, seu poder, sua liberdade, tanto há ainda por se alcançar nessa justa batalha, que resulta incômodo reduzi-la a uma posição menor, desviar a mulher de sua luta e falar em minha mulher.

Poderia seguir a conduta de outros e dizer que amo minha esposa, mas não consigo superar a estranheza que a formulação provoca. Para chamá-la de esposa, sinto que deveria vestir um fraque, segurar entre os dedos um copo gordo com conhaque, pronunciar pausadamente cada sílaba. Há na palavra esposa uma formalidade que destoa muito da intimidade desejável numa relação amorosa. Entre esposo e esposa o riso é quase impossível: imagino essas duas figuras solenes retornando do baile e retirando-se cada uma ao seu aposento, sem nem se tocarem. Estão presas num contrato de matrimônio, e não é coincidência que a mesma palavra valha para algemas, ao menos em espanhol. Ou não, peço perdão aos esposos, pode ser que alguns se amem de fato e, como todos nós, só não tenham encontrado a palavra adequada.

Minha companheira, minha parceira, minha comparsa. Ouço essas sugestões que vão se fazendo mais comuns em rodas sem conhaque e ainda assim continuo ressabiado. Cada uma delas parece dizer outra coisa, subtrair amor do amor e lhe acrescentar outra finalidade: a companheira de militância, a parceira de projetos vários, a comparsa de crimes inconfessáveis. Alguém poderá elogiar a neutralidade de cônjuge, em certos círculos também conhecido como conge, mas é difícil ouvir essa palavra e não pensar de imediato em trâmites jurídicos e burocráticos, e a isso o amor não quer se prestar. De minha parte, por fim, me vali enquanto pude da palavra namorada, que guarda sua ternura e sua simplicidade, mas depois de duas décadas de relação senti que se fazia tarde para tal nome.

De tudo isso talvez se possa concluir que falta uma palavra, e onde falta uma palavra quase sempre falta um sentido, falta uma compreensão mais exata de desejos e estados de alma. No fundo, cada um desses termos poderia dar conta do que queremos designar, se não houvesse um desconforto anterior, um desconforto que se inscreve entre o amor e a pessoa amada. Amo minha mulher: aqui o problema não está no amor nem na mulher, e sim no pronome que teima em se entremear. Minha mulher, minha esposa, minha companheira. Minha: em toda parte esse pronome possessivo, como o chamam com precisão os gramáticos.

Chego enfim ao que desejo nomear. O que me parece fazer mais falta é uma compreensão radical da emancipação dos corpos, é a aceitação verdadeira do princípio da liberdade. Minha mulher jamais será minha mulher, como eu também jamais serei seu homem. Talvez não possa nunca encontrar uma forma confortável de chamá-la, porque chamá-la pode ser prendê-la, pode ser um apelo para que ela aceite um estado de coisas e um lugar dado. O que digo é simples: que nos cabe viver as relações com mais leveza, fluidez, tranquilidade, sem tanto controle sobre aquilo que designamos próprio. E que talvez o melhor que possamos viver prescinda das palavras, seja apenas o apreço de uma companhia que se demora ao nosso lado, para a nossa sorte.