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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sobre o narcisismo de todos, e a escrita de Ernaux que talvez nos salve

A escritora francesa Annie Ernaux - Catherine Hélie/ Gallimard
A escritora francesa Annie Ernaux Imagem: Catherine Hélie/ Gallimard

Colunista do UOL

08/10/2022 06h00

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Somos todos seres autocentrados, individualistas, cada vez mais enxergamos o mundo com a distorção dos nossos olhos tão próprios. Nada compreendemos senão sob as lentes da impressão pessoal, em pouco acreditamos senão pelas ilusões da observação imediata. Cada aspecto da vida comum tem se curvado a um narcisismo acentuado, inclusive a cultura, inclusive a arte. Há quem acuse a literatura de ter desistido de expressar essa realidade e se tornado ela mesma um discurso autocentrado, incapaz de imaginar outro mundo, incapaz de contemplar o outro e transportá-lo às páginas agora estéreis, esquálidas. Há quem justifique seu desinteresse pela literatura com essa acusação, não de todo infundada.

Em seus melhores momentos, porém, a literatura sabe contradizer seus críticos mais ácidos, sabe triunfar contra as verdades prontas demais. E o faz, muitas vezes, sem trair sua própria vontade, sem renegar a atração que sente pelo olhar pessoal e pela intimidade. Alcança sua relevância bem ali onde julgavam impossível, na terra supostamente infértil da subjetividade. É o que faz a francesa Annie Ernaux, premiada esta semana com o Nobel: sem nunca fugir de si, produz uma obra que em muito a ultrapassa, que transcende seu lugar ínfimo e a imerge na coletividade. Pode ser que assim reabilite esse desejo que sentimos de nos contar, pode ser que assim redima o narcisismo de todos nós.

"Temos apenas a nossa história e ela não é nossa". É certeira essa epígrafe de Ortega y Gasset que Ernaux escolhe para "Os anos", uma densa autobiografia sua que é também uma biografia peculiar de seu país, ou de algo mais vasto. Seu mecanismo literário é bastante excepcional: a cada parágrafo a autora recusa o uso do "eu" e se plasma num instável "nós", que pode se referir à sua família, sua geração, os franceses, os europeus, quiçá a humanidade. "Captar o reflexo da história coletiva projetado na tela da memória individual", eis a intenção que a autora declara dentro da obra, eis a razão do encanto que provoca. Na vida tão distante de Ernaux estamos autorizados a ver a nossa própria vida, e assim ela se multiplica e nós nos multiplicamos, e assim se cumpre um anseio que é de toda a literatura.

Para narrar as experiências mínimas e banais, os detalhes de uma vida bastante comum ao longo das décadas, torna-se imprescindível o exercício da inteligência. É no olhar agudo que Ernaux se distingue de outros narradores de si, é na clareza com que descreve os meandros de uma sociedade em transformação incessante. Para entender os outros, ela não ignora suas vozes, não deixa de ouvi-las de diversas formas, nos diálogos que recorda, nas propagandas, nos filmes, nas músicas. Vai relatando uma cultura atravessada pela cultura, vai mergulhando nessa memória dos outros que é sua maneira própria de lembrar e de fazer parte do mundo. E na memória dela nós mergulhamos, e ali também nos encontramos, mesmo que na diferença.

Mas, então, a única forma possível de explorar a si mesma seria por uma abdicação, pela recusa a se conceber como sujeito avulso? Claro que não. Afirmada essa noção de que o eu é sempre expressão de um coletivo, que uma multidão se oculta num só indivíduo, pode-se voltar à primeira pessoa e à experiência íntima, agora sem um juízo tão severo. Em outras obras, Ernaux narra a si mesma sem se esquivar do eu, distingue-se dos outros e vasculha a singularidade de sua existência. Em "O acontecimento" esse gesto é nítido, Ernaux se narra com enorme transparência e o resultado não tem nada de ensimesmado ou frívolo. Pela importância do tema, um aborto ilegal e a resistência moralista que suscita, e pela crueza e exatidão da narrativa, esse pequeno livro acaba alcançando uma potência espantosa.

"Ter vivido uma coisa, qualquer que seja, dá o direito imprescritível de escrevê-la", afirma a narradora, e ante tantos direitos que lhe são negados ao longo da história, ante tantas violências que ela sofre, só podemos acolher essa reivindicação tão justa. Na vivência traumática da escritora está presente, sim, o trauma de uma infinidade de mulheres em diversas circunstâncias, está manifesto o amálgama de vida e morte, de liberdade e interdição, que constitui a própria experiência feminina. "O verdadeiro objetivo da minha vida", diz Ernaux ao fim do livro, "talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência dissolvida na cabeça e na vida dos outros".

A autora parece sentir com força tanto o desejo quanto o imperativo de recordar, e tão bem os traduz em palavra que pode provocar em nós o mesmo ímpeto. Ler Ernaux é entendê-la e buscar ao máximo entender a si mesmo. Talvez esteja aí a grandeza de sua contribuição às letras e à humanidade, a proposta de uma escrita que recuse radicalmente a dissolução da experiência, a um só tempo própria e alheia. Escrever assim, viver assim, é alcançar um grau de intensidade indispensável à contemplação do nosso tempo e da nossa existência. Pelas palavras, o que ela propõe é travar o vão combate contra aquilo que não queremos encarar, o golpe fatal contra o narcisismo, a certeza do desaparecimento de tudo o que temos e somos.