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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A volta do rosto completo: elogio ao nariz e à boca que enfim reaparecem

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Imagem: iStock

12/03/2022 06h00

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"Os olhos, os olhos propriamente ditos, não têm qualquer expressão", leio num livro de José Saramago e paraliso com a impactante descoberta do já sabido. Os olhos, os globos oculares, são inertes, apáticos, não dizem nada. São incapazes de manifestar qualquer sentimento, nem alegria nem desamparo, nem tédio nem graça. Trazem alguma beleza em suas cores, é verdade, oscilam entre a transparência e a opacidade, por vezes guardam profundidades, mas isso é tudo, nada mais. Saramago volta para explicar o engano em que insistem o nosso olhar e a nossa linguagem: "as pálpebras, as pestanas e as sobrancelhas é que têm de encarregar-se das diversas eloquências e retóricas visuais, porém a fama têm-na os olhos".

Nos últimos dias, ante a notícia e a realidade das máscaras que começam a cair, que começam a libertar os rostos, tenho lembrado seguidas vezes dessa passagem. Tanto tempo estivemos limitados a uma percepção parcial das feições dos outros, nossa atenção voltada apenas aos inexpressivos globos oculares. Não surpreende que os encontros casuais entre conhecidos tenham perdido vivacidade, e que entre desconhecidos domine a indiferença, o desinteresse, a passividade. Quanta falta tem nos feito a imensidão escondida debaixo das máscaras, o franzir de um nariz, a rendição a um sorriso tímido? Que estranho prazer nos aguarda em passear pela cidade e voltar a ver bochechas, queixos, bocas.

O nariz é uma parte do corpo muitíssimo subestimada. Há quem observe em um nariz só o seu tamanho e sua regularidade, se traça uma reta exata no meio da face, se não ocupa espaço demais num rosto mediano, como se a discrição fosse a única virtude a que ele pudesse almejar. Um nariz pode valer muito mais, pode ser o reflexo de sutis sinuosidades do espírito, pode ser a representação mais enfática de uma personalidade. Tem pouca autonomia em expressar mensagens, é claro. Mas, ao se franzir, com que vigor não complementa uma contrariedade? E ao espargir sonoramente o ar, com que clareza não afirma a decepção, o desdém, a desilusão, afetos inescapáveis nos anos que se passaram, afetos que ficaram afogados sob o pano disforme?

Nenhuma outra parte do corpo mereceu uma obra tão aguda e tão perfeita quanto a que lemos em "O nariz", de Nikolai Gógol. Sem razão compreensível, num dia qualquer, Kovalióv desperta e descobre no espelho, em lugar de seu nariz, uma superfície lisa — tão lisa quanto aquelas que há dois anos temos descoberto nos rostos de cada esquina. O susto logo se converte em indignação, e em poucas páginas ganha as feições de uma crise que se apodera de toda sua vida. Tudo se perde junto com o nariz: sua identidade, seu poder, sua eminência social, seus pequenos prazeres, suas relações, suas estimas. Enquanto isso, o insolente nariz de Kovalióv desfila pelas ruas acreditando-se uma autoridade qualquer — uniformizado como os tantos narizes que já não temos visto.

Até onde sei, à boca ninguém dedicou uma obra tão direta e resistente aos séculos, mas é evidente que ela goza de muito mais respeito no universo poético. Falo da boca e imagino despontar na memória do leitor uma vasta antologia de descrições lidas ou ouvidas, inumeráveis lábios e dentes e línguas que deixaram sua marca na cultura. Como o nariz, como qualquer outro atributo humano, mas agora de modo muito mais perceptível, cada boca é única e irrepetível, nenhuma boca jamais foi idêntica a outra. Daí o mistério que se cria quando não vemos boca nenhuma, quando a máscara esconde o elemento mais definitivo de uma pessoa. Eclipsa-se o sol de um rosto, e tudo o que sobra são nuvens.

Para falar da boca convoco Julio Cortázar, na passagem mais memorável de "O Jogo da Amarelinha". Horacio toca a boca da mulher que ama, vai tocando a borda da boca, desenhando-a como se brotasse de sua mão, como se pela primeira vez a entreabrisse. Fecha os olhos e recomeça, fazendo nascer a cada vez a boca que deseja, a boca que sua mão desenha no rosto da mulher, e que coincide exatamente com a boca dela, que sorri por baixo da mão que a desenha. É uma cena de pura sensualidade, possível apenas entre amantes, inacessível na cotidianidade austera. Mas é quase isso o que este tempo de bocas veladas nos exige: que sejamos capazes de desenhar a boca invisível debaixo da máscara alheia, e que magicamente ela coincida com a boca que ali existe.

Já não precisaremos adivinhar mais nada, e estou feliz por isso. Só não estou mais feliz que a minha filha, que ontem voltou para casa exultante depois de um dia atípico, o dia em que a escola permitiu às crianças que ficassem sem máscara ao ar livre. Quase que não entramos na sala, ela disse, foi tudo um longo recreio, todos a tarde inteira no pátio, conversando animadamente. Só então compreendi qual era seu desejo, a impaciência que ela sentia em relação às máscaras, sua ansiedade em vê-las abolidas. Não era para libertar a si mesma de um incômodo, era para que visse enfim o nariz e a boca dos amigos, para que enfim se fizesse pleno o sorriso.