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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A atenção total ao presente: uma prisão para a memória e o pensamento?

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

09/10/2021 06h00

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Por estarmos tão atentos, perderemos a capacidade de abstrair, a capacidade de esquecer? Essa nossa vigilância contínua, essa decisão de acompanhar cada mínimo ato da nossa vida coletiva, cada notícia ou prenúncio de notícia, cada expressão menor de uma derrocada política e sanitária, será toda essa atenção uma prisão para a memória e um limite para o pensamento? Não sei por quê, de repente me vi tomado por essa angústia, pelo medo de ficarmos continuamente presos neste tempo convulsivo, incapazes de esquecer, de superar, mesmo quando dele já tivermos saído. Como se houvesse o risco de fazer do presente lamentável um momento intransponível, um choque perene, um trauma que passaremos os anos tentando dirimir.

Para entender melhor o que eu mesmo digo, procuro refazer o caminho do raciocínio. Acho que o medo me sobreveio enquanto eu me distraía, enquanto escapava das notícias urgentes lendo um longo artigo sobre a memória total, sobre a memória absoluta de que algumas pessoas padecem. Essas pessoas, não mais que algumas dezenas no mundo inteiro, conseguem recordar cada dia específico de suas vidas e recompor suas horas, o que fizeram, quem encontraram, o que ouviram. O que poderia ser um dom, descubro, se converte num fardo, num impulso incontrolável e exaustivo. Vivem eternamente divididas entre o presente e o passado: cada informação nova, cada visão momentânea suscita uma sequência vertiginosa de lembranças, alienando-as da vivência imediata e da possibilidade de um futuro.

Há, porém, um detalhe importante em seu procedimento, revelador de como funciona toda memória, mesmo as falíveis. Para guardar essa quantidade assombrosa de lembranças, os dotados de grande memória têm um compromisso extremo com o registro, algo que beira o obsessivo. Quase sempre, a partir de um ponto atípico e marcante em suas vidas, começam a registrar com afinco um sem-número de acontecimentos pouco significativos, a preservar fotos, cadernos, objetos inúteis. O que fazem em seus armários repetem nos depósitos internos de sua mente: armazenam, revisitam e catalogam com obstinação seus fatos íntimos, como se disso dependesse sua própria realidade, sua existência.

São acumuladores de lembranças, em suma, assim como temos sido acumuladores de notícias, de dados trágicos, de ações deploráveis, de declarações ofensivas. Estaremos catalogando este tempo, obsessivamente, para podermos examiná-lo no futuro? Estaremos realizando, em coletivo, o registro minucioso de um acontecimento traumático, que por fatalidade haverá de concorrer com a atenção possível aos dias vindouros? E se assim for, não corremos o risco, como os de memória prodigiosa, de nos tornarmos a um só tempo guardiões e prisioneiros das nossas lembranças, do nosso infortúnio?

Saí do artigo e me lembrei de Funes, o memorioso, o personagem em que Borges antecipou de maneira impressionante a descrição desse quadro clínico à época desconhecido. O primeiro dos traços característicos de Funes é sua capacidade de saber, a todo momento, a hora exata do dia, o minuto exato, numa atenção indefectível ao presente. Foi desse dom que Funes derivou sua memória infinita, depois de uma queda de cavalo que o levou à paralisia. Tão absoluta se fez a memória de Funes, que ele se tornou capaz de distinguir e reter a imagem de cada pedra, de cada folha, de cada rastro de pó que alguma vez viu na vida, em suas formas sucessivas. Sua assimilação do mundo era total, nenhum detalhe escapava aos seus sentidos.

E, por muito saber, por muito captar, Funes já não pensava — é o que o narrador chega a compreender e a lamentar. Ele é "o lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente preciso", e por isso mesmo se torna incapaz de abstrair, de alcançar ideias gerais, de nomear algo mais que a novidade, de buscar princípios abrangentes e comuns. Pensar é olhar além das especificidades, é unificar, abarcar um todo, o narrador explica. "No abarrotado mundo de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos". Estaremos vivendo, em esforço coletivo, no abarrotado mundo de Funes que não favorece o pensamento?

É bem possível que estes sejam receios disparatados, inverossímeis. Nossa mente em nada acompanha a dos sujeitos aqui descritos, nada nos levaria a pensar que pudéssemos sofrer de seus sofrimentos. O mais provável é que muito esqueçamos em pouco tempo, que essa infinidade de informações diárias logo se desvaneça em nossos depósitos íntimos. Espero que seja, nesse caso, um bom esquecimento, que a observação aguda de um tempo resulte numa elaboração, e não num recalque, num apagamento. Se não queremos que lembranças tão vívidas conturbem as nossas ideias, também não desejamos que nos assombre, nos sonhos, nos silêncios, aquilo que nunca nomeamos e nunca entendemos.