Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Dos deveres insistentes da quarentena
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Dos deveres insistentes da quarentena:
Respeitar a quarentena. Maldizer a quarentena. Lamentar, execrar, deplorar a quarentena. Dizer que a quarentena obstrui, interrompe, paralisa, dizer que ela irrita, dá nos nervos, dizer que ela desanima, abate, deprime. Dizê-lo intimamente. Calar sobre os males da quarentena porque já se foi o tempo de falar sobre isso, porque já cansam os tantos professores da quarentena, poetas da quarentena, reclamões da quarentena, profissionais da quarentena. Calar as queixas contra a quarentena porque para isso já basta o sórdido presidente. Respirar. Respeitar a quarentena.
Repetir tantas vezes a palavra quarentena que ela então já não diga nada, que se desfaça em sílabas indiferentes, uma mera sequência de es anasalados como numa cantilena. Esquartejar a quarentena. Compreender que sua matéria não é a palavra, e sim o tempo, e decepar os dias que restam até o fim da quarentena, as horas que restam até o fim dos dias, os minutos que restam até o fim das horas. Aceitar que o tempo esquiva toda tentativa de violência e reconciliar-se com ele. Reconhecer que a indigência do presente é habitada por um passado largo, por um futuro desconhecido e imenso, e chegar a ver até alguma beleza no movimento incessante e errático do tempo.
Esquecer a quarentena. Despertar sem muito pensar no dia que vem pela frente e se vestir por inteiro, calçar meias e sapatos, pentear-se diante do espelho. Terminar de uma vez aquela livre paráfrase do poema de Juan Gelman, trocando o exílio pela quarentena, e perceber que se a coluna está pronta só pode ser sexta-feira. Cogitar, por um instante que seja, encontrar os amigos depois do trabalho, sentar para tomar uma cerveja num bar qualquer, estender pela noite a bebedeira. Tirar os sapatos e as meias, ir dormir ainda sóbrio, ainda cedo, e se concentrar para, no dia seguinte, por um instante que seja, não esquecer de esquecer a quarentena.
Ler notícias o dia inteiro, ouvir notícias, assistir às notícias quando a noite chega. Levar as mãos à cabeça seguidas vezes, afundá-las nos cabelos, esfregar a testa, espremer os olhos com os dedos. Tentar raspar as notícias que aderiram à pele, tentar borrar as imagens que as pálpebras retiveram. De olhos fechados, perguntar-se com total descrença se não estaremos imersos no maior e mais dramático dos pesadelos. Desligar a televisão, fechar o computador, deixar de lado o celular, instaurar na casa o silêncio. Ir preenchendo o silêncio com palavras alheias, pensar no silêncio de Mario Quintana, este impoluível silêncio em que eu escrevo e você me lê.
Esperar que os vizinhos poluam o silêncio com o ruído de suas panelas, de sua raiva, sua indignação, seu desespero, e então ir ouvi-los junto à janela. Chocar seguidas vezes uma colher de pau contra o dorso de uma frigideira, ver como a colher vai deixando pequeníssimas gretas no fundo preto, desejar que o ruído estridente consiga produzir sobre o real o mesmo efeito. Gritar contra o presidente, mas sobretudo conversar com os vizinhos através dos gritos, ir compondo nas variações de cada grito um discurso coletivo, um manifesto. Recuar ao sofá, recostar-se, massagear a garganta um tanto áspera, sentir como o corpo ainda vibra de seu rompante recente.
Ficar em casa, isso está claro. Maldizer a pequenez da casa, tenha ela o tamanho que tiver, lamuriar-se da proximidade das paredes. Levantar-se, mover-se, explodir as paredes da casa de todas as maneiras imagináveis, comunicar-se por todos os meios, com quem quer que seja. Tentar fazer da casa um lar para a infinidade. Tentar existir no mundo apesar de tanta ausência. Voltar a recolher-se na intimidade da casa. Percorrer cada cômodo da casa à procura de seus habitantes, das filhas, da companheira. Abraçá-las, uma de cada vez, envolvê-las intensamente sem que elas entendam por quê, sustentar o abraço até que entendam.
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