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Julián Fuks

Nostalgia do abraço: Alguns argumentos em defesa do que querem abolir

Getty Images
Imagem: Getty Images

Julián Fuks

01/08/2020 04h00

Tenho imaginado abraços, tenho atravessado ruas hipotéticas para abraçar quiméricos corpos. Vejo um amigo a caminhar sem pressa pela calçada, talvez assobiando como se nenhuma aflição o acossasse, e no instante seguinte nossos corpos se encontram, tenho minhas mãos em suas costas. Como a minha imaginação é escassa, tenho decididamente ansiado, nos filmes que vejo, nas séries anteriores a este isolamento comunal, pelo toque despreocupado entre os personagens. Li um livro inteiro de Eduardo Galeano, "O livro dos abraços", à espera de um abraço que nunca é narrado. Acho que tenho até feito uso excessivo da palavra, tenho mandado abraços indiscriminados, como se a própria palavra pudesse executar o gesto tão desejado.

Não posso negar, me assusta a frieza impassível com que alguns especialistas - e outros nem tanto - têm decretado o fim terminante dos abraços. No futuro que insistem em antecipar, no tal novo normal que não é mais que a perpetuação da anormalidade, o enlace casual entre os corpos estaria vetado. Agente lamentável de contágio, o abraço seria descartado como mera formalidade, como rito desnecessário, espasmo de frivolidade. Sabem demais e não sabem o essencial, esses sábios. Querem esterilizar os corpos, desinfetá-los de sua própria humanidade.

Ninguém me entenda mal, este não será mais um ataque à ciência e ao conhecimento especializado. Apenas prefiro, às vezes, calar essas vozes sentenciosas, e deixar que ecoem pela minha casa afirmações mais delicadas - tão delicadas que até inexistem em qualquer discurso ou página publicada. Mais de uma vez me vi a imaginar como seriam as instruções de Julio Cortázar para o exercício perfeito do abraçar, como seria esse esboço esquecido em meio às suas instruções para chorar, para cantar, para dar corda no relógio, para subir uma escada.

Suspeito que instruísse o abraçador a não abrir demais os braços, sob o risco de parecer um anfitrião espalhafatoso, nem a mantê-los rentes ao dorso até que seja tarde demais. Talvez recomendasse uma pressão exata, fraca o bastante para não sufocar o peito ou estalar os ossos, mas ainda capaz de comprimir a carne, de fazer do gesto algo mais do que carícia vaga. Sugeriria decerto algum contato imediato, escapando aos tecidos, a mão na nuca ou um breve roçar de peles que garanta ao encontro um mínimo de calidez corporal. Acho que estipularia uma duração média de três segundos, julgando entretanto desejável o prolongamento em circunstâncias especiais - se dor, ou temor, ou comoção, ou piedade, ou amor.

Que o abraço protege, que o abraço abriga, que no abraço os problemas do mundo se dissipam - evoco cada um desses argumentos duvidosos em defesa do gesto que agora querem abolir. Penso, no entanto, que o abraço é mais desejável justamente porque contagia, porque nos faz vulneráveis, porque deixa sobre os nossos ombros uma fração ínfima do corpo do outro, de suas impurezas bem-vindas. O abraço nos infecta de alteridade, nos polui de carinho. O fundamento do que aqui alego é dos mais íntimos: o prazer que sente a minha filha ao se lançar sobre mim quando tem as mãos mais sujas de terra, o rosto mais lambuzado de comida. Eu a repreendo, mas, como ela não lê, posso aqui admitir que é um prazer que compartilho.

Ninguém me entenda mal, ninguém me julgue um sujeito pegajoso e expansivo - este texto é todo cheio de riscos ridículos. Se me preocupa a abolição do abraço como protocolo inicial do encontro entre amigos, é porque sou pouco fluente na linguagem do toque, porque me entrego demais à contenção. Um aperto de mãos, um beijo no rosto, um abraço lateral com tapa ríspido: cada um desses toques insignificantes pode ser imprescindível aos acanhados e retraídos. Nos poucos reencontros que já me permiti, confesso que senti falta do contato físico, uma falta que quase ganhava a forma de uma vertigem - como se, num átimo de desatenção, amigos que há muito não se viam pudessem sucumbir de vez à distância, pudessem se tornar indiferentes e frios.

Ninguém me entenda mal, não tenho pressa, não sairei pelas ruas estreitando desconhecidos, esperarei com a paciência possível um tempo de abraços livres. O país agora sofre a dor de seus mais de noventa mil mortos, e teme como poucas vezes que a tragédia ainda tarde a encontrar seu fim. Mas justamente porque o país dói, e porque teme, e se compadece, e se apieda de suas vítimas, justamente porque não podemos nos tornar indiferentes e frios, é que os abraços se farão necessários quando enfim consigamos sair.