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Eduardo Carvalho

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Geovani Martins: ‘Quero escrever histórias que serão entendidas por todos'

O escritor Geovani Martins - Ana Alexandrino/Divulgação
O escritor Geovani Martins Imagem: Ana Alexandrino/Divulgação

Colunista do UOL

19/10/2022 11h10

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Em Ecoa, tenho a chance de partilhar (como colunista) questões que são profundas para mim e aqueles que fazem parte do meu cotidiano, sempre na busca de jogar para frente algo que precisa ser discutido, debatido, conversado. Num papo reto, franco e sem dilemas, ser antena daquilo que está por vir.

Com esse propósito, voltei a subir o morro - mais uma vez - através da literatura de um ambiente que é particular e também coletivo: a Rocinha. Mas numa caminhada não tão facilmente dada. Através da escrita do 'irmão' de experiências, o escritor Geovani Martins e seu mais novo 'filho', ou melhor dizendo, livro.

"Via Ápia", primeiro romance do autor, chega às bancas das livrarias, praças e onde mais quiser estar como mais uma obra densa do antes jovem e agora homem formado, que se viu entre os nomes da nova geração das páginas brasileiras. Após "O Sol Na Cabeça" (Cia das Letras - 2018) ter virado febre há quatro anos, Martins reedita a cena encarando o mesmo cenário, e com ainda mais nuances.

O encontro faz do momento duas pontas de um mesmo fio se unirem. De uma vez só, te convido a dar uma volta "Na Curva do S" (Todavia, 2018) e chegar justamente aquela que é uma das principais vias da maior favela do país. Vem curtir a visão:

Eduardo Carvalho: "Via ápia" é o livro da maturidade para Geovani Martins?

Geovani Martins: Acho que sim. Eu consigo enxergar nele um processo de amadurecimento na escrita, na minha maneira de abordar o trabalho. Consegui dar vários passos nesse sentido. E nessa coisa da guerra às drogas, que já era uma algo que vinha em "O Sol na Cabeça" (2018), no "Via Ápia" consigo me aprofundar de uma forma mais contundente. De alguma forma, amadureço no livro de contos. Inclusive quero partir para outro tipo de abordagem narrativa. Então, sim, considero um ato de maturidade na jornada como escritor.

Eduardo Carvalho: O que é mais fácil: escrever não-ficção ou romance?

Geovani Martins: Eu acho que a ficção ainda é um lugar que me coloca e e deixa à vontade. A não-ficção eu ainda estou buscando a minha linguagem, tateando. Estou trabalhando em um livro de não-ficção agora, mas sinto que ainda estou encontrando essa voz. Não sou jornalista de formação, meu jornalismo é completamente pessoal e precisa tomar voz. Gosto muito dessa ideia de conseguir equilibrar jornalismo com ensaio, ser um autor e colocar perspectivas junto de dados apurados. Esse tipo de equilíbrio que estou buscando agora. Esse livro em si é algo que me sinto mais confortável, principalmente nesse formato do conto e agora no romance. Desenvolvi um estilo que é meu, ainda estou pesquisando, mas me sinto confortável. Se precisasse escrever um conto hoje, por exemplo, conseguiria sentar e fazer. Tenho as ferramentas. Tem muita coisa que a gente quer dizer, e nesse movimento da linguagem, a ficção me dá tranquilidade, depois de tantos anos trabalhando, passar pelos livros, estudo das formas.

Eduardo Carvalho: É interessante pensar que algumas virtudes já vistas ali agora estão em profundidade. Você continua escrevendo "menó", "mó", a investir na linguagem das gírias...É estratégia pra falar primeiro pra quem mora nesse lugar?

Geovani Martins: Sim. Sempre. Acho que tem várias coisas nessa pergunta. Acredito que a literatura e o fazer literário está ligados à oralidade. Sempre fico nessa corrida de alcançar o que a oralidade pode produzir. Tem a ver com pra quem quero alcançar, pessoas que muitas vezes não se reconhecem nos narradores, dos personagens, quero alcançar esse público que fala parecido com meu narrador e personagens. É uma questão de empatia e identificação. E nas minhas referências e formação, hoje em dia eu consigo entender de forma mais clara. Sempre tive a literatura brasileira, canônica, como principal formação. E isso é uma verdade, mas não completa. Existem outros dois pilares. Um deles é a música, e aqui vou passar por vários gêneros, desde samba ao pagode, rap, reggae, mpb... Me forma como escritor. Tem a ver com som, com oralidade, esse caráter oral. E outro pilar hoje em dia são os contadores de história na vida, que encontro nas praças, nas ruas, essas pessoas que conseguem envolver os ouvintes com histórias corriqueiras do dia que foram ao trabalho, à praia, que fazem um atrativo para outras pessoas. E essas pessoas que têm facilidade desenvolvem suas ferramentas, deixando a roda em suspense para saber o que vem depois. Essas pessoas têm domínio da narrativa. Por isso acho que meu narrador se aproxima muito desse sotaque, sempre se espelha. A figura do contador de histórias está sempre presente no continente africano, e consigo fazer esse paralelo. Eu quero escrever histórias que possam ser entendidas por todo mundo, sem abandonar meu capricho estético, temas às vezes espinhosos, e de uma maneira que seja acessível e envolvente. Escrever um livro de 350 páginas e entregar pra alguém, a pessoa pode largar aquele livro. E eu fico muito feliz de saber que várias pessoas que não tem hábito da leitura pegam meu livro e conseguem ler. E isso pra mim é um dos grandes méritos.

Eduardo Carvalho: A dona Marli é, verdadeiramente, a dona Neide, sua mãe?

Geovani Martins: Ela é bem próxima, talvez a personagem mais próxima que construí. Tenho refletido muito sobre ela, sobre essa busca de retratar essa mãe. E é a mãe de tantas outras pessoas, e sendo uma pessoa que foi criada por outras mães. Essa personagem é mais um passo de tentar dar conta, de trazer nessa narrativa uma figura que é muito cara e presente na minha vida. Eu ainda não acho que consegui alcançar tudo isso, mas ela é um passo nesse meu desejo de retratar a estrutura de tantos lados, de tanta gente e que inevitavelmente eu vou olhar pra minha mãe, o modo como fala, os trejeitos, os pensamentos. Essa referência é natural. Ela é minha mãe, mas ela poderia ser a de muita gente. A gente, que acabou passando por esse tipo de criação comunitária, tem o imaginário dessa mãe preta, sempre na fronteira do carinho e do esporro.

Eduardo Carvalho: Qual é a força do elemento da empatia nas histórias pra você? Mais uma vez você narra contextos que não são vividos por todos, mas reconhecidos. Em que pese ser didático e não ser?

Geovani Martins: É uma questão que estou sempre envolvido. Como construir um caminho que eu não precise soar didático, e ao mesmo tempo, consiga dizer o que quero dizer. Como dizer, como não...Muita gente talvez não perceba, mas estou sempre tentando contar uma história em cada capítulo, em cada tema, sempre algo a se desenvolver. Sempre tem um tema. Eu nunca digo, mas está ali, as ações. Fico sempre pensando como construir uma narrativa o que quero discutir, e em algum momento, vou fazer algum personagem que consiga dizer aquilo. Na maioria das vezes, busco outras ferramentas.

Eduardo Carvalho: Nesse ponto, na real, algo já visto pra fora, é a questão das drogas. É mais fácil colocar na vida de um personagem a abordagem sobre do que propriamente tratar? Que tipo de mudança há em relação?

Geovani Martins: Eu acho que não é questão de ser mais fácil, mas ser acessível pro leitor. A gente vive um momento, enquanto cidadão carioca e brasileiro, que pra sobreviver temos a necessidade de embrutecer. Criar casca, e essa casca consiga permitir vencer um mês atrás do outro. Se todas vez que acontecer uma tragédia a gente ficar dilacerado, já que o Brasil é uma fábrica de tragédia, a gente acaba embrutecido. É uma estratégia de esgarçar até o limite, deixar com que fique sem respirar e feche os olhos para certas coisas, é uma maneira de manter esse tipo de política. A ficção vem por outra via, de construir personagens que mostrem uma trajetória, fazendo com que o leitor, que muitas vezes vai ali desarmado, querendo consumir ficção, sinta aquilo que as notícias são a ele todos os dias, e ele já está evitando, ele tem dois tipos de instintos. E tem uma parcela da população que sabe que existe, aparece no jornal…Imagina se ela ficar o dia todo pensando que também é responsável pelas mortes que aparece nos jornais? Ela vai ter que se colocar a fazer alguma coisa, ou vai ter que lidar com isso. E muitas delas preferem não lidar.

Eduardo Martins: Acho que pinta muito bem a questão e noção, na real, de invasão, ocupação e território. E nesse sentido, queria saber a tua interpretação sobre cada uma dessas palavras…

Geovani Martins: A questão da invasão e a maneira que trago pra história, e que de alguma forma, é recontar esse período. Fiz questão de colocar as datas, achava que o cabeçalho traz uma ideia de oficialização de algo, sempre me colocando no tempo inteiro de algo de época. Falando de um tema importante, um desenrolo que aconteceu há dez anos. Já coloco essa abordagem através de uma inversão, dentro de uma história oficial, macro, de alguém que vai entrevistar o oficial de segurança pública, o cara da UPP, o governador e no máximo vai entrevistar alguém da associação de moradores. Essas histórias estão aí. E na maioria das vezes tem um cara fazendo uma tatuagem, alguém que está trabalhando... Isso é a história inexistente nesse período. Quando coloca as datas, é pra firmar algo, de que essas pessoas também estavam escrevendo a História. Território eu sei que terá vários leitores, muitos que pisaram nesse lugar, outros que não, ou de lugares parecidos, semelhantes. E pra quem que escrevo? Para os dois, tentando uma via que consiga atrair pela identificação ou pelo estranhamento. Foi bom ter contado com leitores de fora, da pista, e sendo a equipe da Companhia das Letras, e assim, ir sacando...E receber os comentários, coisas que pra mim não passavam pela cabeça. Como por exemplo: não tinha no livro nenhum momento onde a UPP tinha notícia de alguém de fora. Tô o tempo inteiro passando por uma dinâmica por fora, cruzada. E a notícia da UPP chegava por fora, e dei razão. Na minha perspectiva, de quem viu acontecer de dentro, não era necessário.

Eduardo Carvalho: Quatro anos depois de sua ida estrondosa à Flip, com que cabeça vai Geovani Martins para Paraty?

Geovani Martins: Vou pensando com a cabeça de agora, querendo que o livro chegue a maior quantidade de pessoas, o mais longe possível. Passar dois anos escrevendo, muitas horas, muita disciplina. Visitar lugares estranhos dentro de mim, memórias, lembranças. Tem uma dificuldade na produção desse livro que passam por vários caminhos, desde a feitura, construir personagens, desenvolver arcos, contar. No meio da pandemia, sem sair, encontro coisas em mim. Acho que escrever um livro, mesmo de ficção, é estar num grau de exposição alto, de preparo, de entrarem na sua cabeça e você não ter controle a partir disso. Agora que está pronto, estou focado em fazê-lo chegar na molecada de 18, 19 anos, de ser relevante nas favelas do Rio, São Paulo, na Bahia, em todo o Brasil. É o sentimento de dar tudo.