Topo

Eduardo Carvalho

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Eu também quero "cumbiar"

Cena do filme "Ya no estoy aquí" - Divulgação
Cena do filme "Ya no estoy aquí" Imagem: Divulgação

24/02/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Cresci marcado pelo ritmo do funk. Ainda que muito mais marginalizado à época, era ali que meus colegas não só de rua, mas do lugar onde eu nasci e tantos outros espalhados pelo país, nos víamos representados nas letras, envolvidas em pancadões que faziam estremecer as janelas da sala. Lembro de inúmeras vezes juntar-me aos pares para vibrar o mesmo som fosse dentro de casa, na escada do prédio ou no bar da rua. Ao longo do tempo - este senhor tão bonito - vi o cenário mudar. Não só eu estava mais velho, como o próprio hobbie havia mudado. O que antes era o encontro até mesmo para arriscar um passinho, dava lugar às rinhas e rodas de rap e hip hop.

As pernas já não tremiam ou desciam até o chão, mas as cabeças movimentavam-se no ritmo da palavra, rimada e cadenciada entre ''hey'', ''ho". Por onde andava, um miniencontro, ou mesmo um grande evento, desses com mais de mil confirmados no Facebook e dois mil presentes ao vivo.

Mesmo com todas as transformações, individuais e dos movimentos, alguns quereres permaneciam, como a curtição coletiva de um mesmo lugar, sentindo-se pertencido a um mesmo universo e aos sonhos que ali nasciam. Ainda que ninguém falasse ou tivesse dimensão, era melhor estar ali do que em outro tipo de reunião ao ar livre, não muito distante de nós: na "boca", onde o tráfico se mostra como saída para quem tem desejos maiores e urgentes.

São lembranças ainda ativas em minha memória, rememoradas todos os dias, quase num exercício de não esquecimento, seja quando desço ou subo a favela da Rocinha, minha embaixada. Mas que ganhou outro peso quando vi, representado na TV de casa, "Ya no estoy aquí" (2019), filme mexicano escrito por Fernando Frias e que concorre ao Oscar de melhor filme internacional neste ano.

Embalados pela cumbia, música típica nacional da Colômbia e que tomou os grandes centros e países, somos apresentados a Ulisses, jovem de 17 anos, saído de Monterrey, com jornada que se assemelha a de muitos outros mexicanos. E não só: periféricos de diversos lugares da América Latina. Retrato urbano das desigualdades. É, ao mesmo tempo, uma ode que une dignidade e pertencimento.

Na contra-dança, o flerte evidente com o caminho apresentado às faixas etárias vulneráveis nesses territórios, experimentando todas as dinâmicas existentes e possíveis para se manter invicto, como se a única coisa que importasse fosse a dança. Era que nem nós pensávamos com o funk, ou os mais jovens com as batalhas. De que não haveria nada que pudesse sobrepor a força daquelas atitudes e do que aprendíamos ali juntos. Pelo menos antes de ser tragados pela falta.

Próximo do final do filme onde fui convidado a entrar no giro e ser, por minutos, feliz como aquele som, meu coração ficou apertado. E não, não era só por ter de deixar os Los Terkos (grupo do protagonista que repete os mesmo signos, como corte de cabelo e passos de música) quando a Netflix apontasse o seu término. Era por concretizar que eles não poderiam vir a meu auxílio depois de ver, entre uma descida ao mercado e outra, o irmão de uma amiga, que vi tomar forma nos encontros de rap, hoje integrante do tráfico.

Fica a frustração deste final real que não é o escrito nos roteiros de Hollywood, mas que vejo no receptor dos meus olhos, numa programação constante e diária da vida.