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Projeto maluco, plágio de Senna e briga com montadoras: o segredo da Gurgel

Gurgel Supermini - Divulgação
Gurgel Supermini Imagem: Divulgação

Lucas Baldez

Colaboração para o UOL

15/04/2023 04h00

A fabricante de automóveis brasileira Gurgel Motores talvez estivesse à frente do seu tempo e não tenha sido bem compreendida. Com ideias arrojadas, a montadora nacional vendeu 40 mil carros de 20 modelos diferentes e produziu diversos protótipos que não saíram do papel ao longo de sua trajetória, entre 1969 e 1996.

Carro com distanciamento social

A Gurgel projetou um veículo com distanciamento social, pensado para taxistas e empresas de transporte de passageiros. O carro desenhado pela fabricante previa a implementação de paredes translúcidas entre o motorista e os passageiros, além de uma porta traseira específica para a entrada dos clientes — à época, o padrão eram carros apenas com duas portas dianteiras.

A proposta do veículo foi patenteada em 1989, mas não foi adiante. Algumas carrocerias de teste chegaram a ser produzidas, mas o sonho não se concretizou na produção do modelo.

Inspirada ou não no conceito da Gurgel, a fabricante chinesa BYD desenvolveu, em 2020, o primeiro carro criado com base nas necessidades do mercado de transporte por aplicativos. Elétrico e com tamanho de um compacto, o BYD D1 possui porta traseira corrediça, para facilitar o acesso, além de telas sensíveis ao toque no encosto dos bancos dianteiros, voltadas aos passageiros, e entradas USB.

Primeiro carro elétrico do Brasil, filme com Pelé e mais

015 - Gurgel E-400 (1975) - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Há mais de 40 anos, a Gurgel já apostava em carros elétricos. O Itaipu E400, criado em 1980, era um furgão com o equivalente a 11 cv e autonomia de 80 quilômetros. O veículo foi o primeiro carro elétrico produzido em série no país.

Xavante, Supermini, Bugato e Tocantins foram nomes de outros modelos conhecidos da fabricante. O primeiro, anteriormente chamado de Ipanema, também suscitou o registro de outra patente: um chassi que misturava plástico e aço, nomeado de Plasteel.

O sucesso da Gurgel à época levou até um de seus modelos às telas do cinema. O Gurgel X-15 aparece no filme "Os Trapalhões e o Rei do Futebol", com a participação de Pelé.

No filme, de 1986, o veículo é o meio de transporte do time do "Galinheiro Futebol Clube", com os trapalhões Didi, Dedé, Zacarias e Mussum.

O X-15 foi um jipe para sete ocupantes que, embora não tivesse tração nas quatro rodas, possuía uma tecnologia chamada de Selectraction, que usava alavancas para frear a roda que patinasse na pista, transferindo a força para outra roda com mais aderência. É basicamente o que faz o diferencial em veículos de tração ou o sistema Locker da Fiat.

Por trás da empresa estava João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, engenheiro e industrial brasileiro, nascido em Franca, no interior de São Paulo. Em 1987, ele conseguiu tornar realidade seu maior sonho de construir um carro 100% nacional.

O veículo foi batizado de Cena (sigla para Carro Econômico Nacional), mas como soava igual ao sobrenome do piloto Ayrton Senna, a família do corredor processou a empresa, que foi obrigada a trocar o nome para BR-800.

Concorrência levou à falência

O processo de falência da Gurgel começou nos anos 1990, a partir do lobby de grandes montadoras junto ao governo brasileiro pela isenção de impostos para carros de até 1.0. Com isso, a empresa nacional ganhou a concorrência das estrangeiras no segmento.

Além disso, a pressão das fabricantes sobre fornecedores contra o compartilhamento de peças com a Gurgel e atrasos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para repassar recursos aprovados para a construção de uma nova fábrica também contribuíram para a derrocada da empresa.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, em 2001, Fernando do Amaral Gurgel, filho do empresário João Augusto Gurgel, falecido em 2009, também culpou os governos do Ceará e de São Paulo. Ele alegou que houve "traição" por parte dos ex-governadores Ciro Gomes (PDT, na época PSDB), do Ceará, e Luiz Antônio Fleury Filho, de São Paulo, falecido no ano passado.

Segundo Ciro, ouvido na mesma época, os acordos com a Gurgel foram rompidos por dívidas não quitadas com bancos que sobraram para os governos.

Independentemente das razões para o fim da empresa, o certo é que hoje a Gurgel vive nas garagens de colecionadores e no imaginário dos amantes de automóveis.