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Kelly Fernandes

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Imobilidade urbana é o motor da desigualdade nos centros urbanos

JORGE HELY/FRAMEPHOTO/FRAMEPHOTO/ESTADÃO CONTEÚDO
Imagem: JORGE HELY/FRAMEPHOTO/FRAMEPHOTO/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

05/02/2021 08h09

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Entender como é a mobilidade urbana de uma cidade, de um estado ou de um país passa por coletar dados, quantitativos e qualitativos, sobre os deslocamentos cotidianos realizados pela população. Ou seja, requer conhecimento dos motivos e destinos das viagens, meios de transporte utilizados, tempo gasto no percurso e etc. Mas, quando se deslocar é um privilégio e não um direito, a imobilidade urbana também torna-se um dado.

Segundo o dicionário Michaelis, imobilidade é a "qualidade ou estado do que não se move; inércia". Imobilidade é o "não mover", condição, na maioria das vezes, involuntária. Afinal, todos os dias inúmeras pessoas são privadas de realizar atividades tão simples, como: visitar um familiar, ir ao médico, fazer esporte, estudar, trabalhar etc.

Em consulta à Pesquisa Origem e Destino realizada na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), entre 2002 e 2003, encontram-se dados que, apesar de desatualizados, procuram expressar em números o que é imobilidade.

Segundo a pesquisa, mais de 5 milhões de pessoas não realizam deslocamentos, o que representa 46,6% da população, percentual geral que varia conforme o município observado.

Por exemplo, Mangaratiba possui o maior percentual de pessoas "imóveis", 59,6%, enquanto Maricá, o menor, 35,1%. Já a cidade do Rio de Janeiro, apesar da concentração de empregos, vagas de ensino e outras oportunidades, além de disponibilidade maior de infraestrutura de transporte, está abaixo da média, com 45,3%.

Alguns índices procuram refletir a variação da quantidade de deslocamentos conforme o perfil socioeconômico da população, tal como o índice de mobilidade, que compara a quantidade de deslocamentos realizados com o número de habitantes.

A última versão da pesquisa realizada pelo Metrô de São Paulo (Pesquisa O/D, 2017), retrata que o índice de mobilidade na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) é de 2,02. No entanto, pessoas com renda familiar mensal de até R$ 1.908,00 fazem, em média, 1,71 deslocamentos diários, enquanto pessoas com renda superior a R$ 11.448 fazem cerca de 2,82.

Sabendo que o principal motivo de deslocamento, normalmente, é relacionado com atividades produtivas - leia-se trabalho - e com a construção de condições para a realização destas, um ou dois deslocamentos a menos significa para pessoas empobrecidas a privação do exercício da cidadania plena, isto é, do acesso aos direitos sociais e às delícias e necessidades da vida em uma grande metrópole, que vão do entretenimento e práticas esportivas até ir ao médico fazer exames de rotina.

Então, a vida para além das exaustivas jornadas de trabalho é espremida em algumas horas, nas quais, sobretudo mulheres, dão conta das atividades de cuidado.

Apesar disso, por mais que funções como levar filhos até a escola, realizar compras no supermercado e acompanhar familiares em consultas hospitalares fique a cargo das mulheres, os homens são os que possuem mais mobilidade. Enquanto os homens fazem 2,13 deslocamentos diários, as mulheres fazem em média 1,91, e são maioria no transporte público coletivo e minoria nos automóveis, normalmente de propriedade ou uso prioritário dos homens.

Após falar de renda e gênero, é necessário tratar sobre raça e cor. Porém, a inexistência de dados impede a construção de um olhar interseccional sobre a imobilidade urbana, portanto que incorpore raça, classe e gênero, informações que certamente expressariam os efeitos do racismo estrutural no acesso à cidade por pessoas negras (pretas e pardas). Fica a deixa para futuras cobranças da sociedade civil.

Mais uma camada de exclusão revelada por dados é a imobilidade em função da idade. Em síntese, crianças e idosos possuem índices menores de mobilidade, apesar das características particulares de cada grupo etário, crianças e idosos partilham do fato de que as cidades não foram pensadas para eles.

Em um mundo feito para a produtividade e no qual estar "do lado de fora" é arriscado, dada a pressa, a velocidade e o despreparo da infraestrutura urbana - calçadas, ônibus, passarelas etc - em contemplar a diversidade dos corpos, resta a reclusão doméstica.

Agora que o mundo virou de ponta cabeça por conta da existência de uma pandemia do lado de fora, ficar em casa tornou-se um privilégio, transformando a imobilidade urbana em um direito, neste caso não traduzido em privação de garantias sociais. Todavia, se os poderes políticos e econômicos permitirem, em breve nos encontraremos do lado de fora, sem peso na consciência ou ressalvas. Mas peraí: nós quem?