Pepita sobre preconceito por ser mãe: 'Sou abusada. É difícil me derrubar'

Pepita é uma mulher conhecida. Ela ganhou notoriedade no funk, se tornou uma referência dentro da comunidade LGBTQIAP+ e será rainha de bateria da Unidos de São Lucas no Carnaval de 2024 em São Paulo. Mas ela é também uma personagem. Nesta entrevista, Universa conversou com Priscila Nogueira, 40, casada e mãe de Lucca.

"A Pepita tem uma vida completamente diferente da minha, é uma irmã, uma personagem que criei com carinho", contou para a reportagem. Ela revela que até seu marido, Kayque Nogueira, demorou para perceber que elas eram pessoas diferentes no começo do relacionamento. "Ele ficava em choque quando via a Pepita dar selinhos no palco", conta.

Muito honesta, Priscila falou de preconceito e maternidade. E ainda trouxe spoilers de seus novos projetos. A nova temporada de "Cartas Para Pepita" acabou de estrear, mas em 2024 deve ganhar uma versão no teatro.

Universa: Como a fama chegou na sua vida?
Pepita: Não escolhi ser famosa e se pudesse voltar atrás, acho que preferiria ser anônima. E também não me acho famosa. Acredito que tenho uma imagem conhecida, querida por alguns e odiada por outros. Comecei minha carreira no funk carioca. Era dançarina e o DJ Chakal me chamou para colocar voz em uma música que ele tinha feito. Gravei e se tornou viral. A partir daí as coisas foram acontecendo.

Saí do Rio e vim para São Paulo para cantar funk e sinto que esse foi o primeiro estado que me entendeu. Sou muito grata a isso. Me casei, me tornei mãe e vivo em São Paulo. Mas foi isso, de dançarina para um viral em um funk.

Como uma mulher travesti, foi difícil essa troca de cidade para se jogar no funk? Sofreu com o preconceito?
Nunca sofri preconceito no funk, sabia? Todos me respeitam muito. Não à toa sou a primeira travesti funkeira do Brasil. O preconceito está fora do funk. Sofro algumas vezes até dentro da própria comunidade LGBTQIAP+. Algumas pessoas não gostam de mim, acham que eu não represento nada. O meu programa me ensinou muito, sabe?

Comecei o "#CartasParaPepita" solteira e hoje sou uma mulher casada e mãe. Cheguei aos 40 anos como uma mãe de menino. Não perco tempo me preocupando com quem não gosta de mim. Sei quem sou e no que eu acredito. Sei onde minha voz e corpo podem chegar e o que é importante.

Não quero ser a única falando com você. Quero que mães iguais a mim também tenham esse direito, mas não existem oportunidades. Eu não vivo só no mês do orgulho, por exemplo. Eu vivo o ano inteiro. Tenho uma criança para sustentar, uma casa para manter. É fácil a marca só grudar a bandeirinha no trio durante esse período. Esse é um assunto que me cansa e me chateia muito.

Você citou seu programa como uma forma de amadurecer. A nova temporada acabou de estrear, não?
Sim, e nessa temporada consegui furar a bolha. Tem uns quatro episódios com pessoas cis, que me mandaram cartas. Fiquei muito feliz em ver essas pessoas confiando em mim para contar suas histórias. É isso que eu quero. Não quero mais falar só com a comunidade LGBTQIAP+. Eles já me conhecem. Quero conversar com o Pedro, com a Joana, com a dona Maria, com o João que fica nervoso quando uma travesti entra na padaria dele... É com eles que quero me entender.

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Esse é o grande diferencial dessa nova temporada então?
Vamos falar com mais pessoas. Eu sou abusada, não à toa meu sobrenome é resistência. Dessa vez temos um repórter trans na rua para trazer as histórias para mim. Em breve teremos um novo quadro, no qual vou visitar as pessoas em suas casas, levando uma garrafa de café e um bolo. Quero entender as histórias e porque as pessoas se emocionam. E vai ter uma versão para o teatro também.

Que grande spoiler. E como será essa versão ao vivo?
Quem teve a ideia foi meu marido, o Kayque Nogueira. Ele até sugeriu que tivéssemos um novo personagem, mas achei melhor que eu mesma fosse a protagonista. Tudo o que vocês acompanham, que é gravado em estúdio, será feito ao vivo. Os convidados, ao entrar no teatro, vão receber um papel para me escrever uma carta. A produção vai recolher e vamos escolher com quem vamos falar. Vou ser coach de todo mundo. Não estou com frio na barriga, mas estou ficando ansiosa. Eu amei essa ideia e já começamos a ensaiar. Provavelmente a estreia rola em 2024.

De todas essas histórias que você recebe, tem alguma que te marcou mais?
Todas as histórias me marcam de certo modo, porque a pessoa tirou um tempo para falar comigo. Tem que confiar em mim para isso. Mas teve algumas que marcaram mais, como o casal que ia todo sábado à noite em uma boate. Um deles ficava no bar e o outro ia para o banheiro fazer sexo com outras pessoas. No fim da noite, o namorado pegava na mão do outro e eles iam para casa e não tocavam no assunto.

Para quem fazia, aquilo era normal, para quem me escreveu, não. O cara que ficava no bar tinha vindo de uma cidade pequena, não tinha recursos para voltar para casa. Ainda estava se estabelecendo em São Paulo. Isso mexeu muito comigo, no sentido de pensar nas coisas que nos sujeitamos para ter um teto e um prato de comida.

Nessa temporada recebi uma carta de uma sogra que está apaixonada pelo genro. As histórias antigas eram mais leves, agora o povo está falando mesmo. Fiquei muito assustada com essa. A nova temporada está perfeita. Vocês vão rir muito.

'A Pepita tem uma vida completamente diferente da minha, é uma irmã, uma personagem que criei com carinho'
'A Pepita tem uma vida completamente diferente da minha, é uma irmã, uma personagem que criei com carinho' Imagem: Divulgação
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Você falou que escolheria ser anônima se pudesse. Qual o lado bom e o ruim de ter sua imagem conhecida?
O lado bom é o amor que você recebe e o ruim é perder sua privacidade. As pessoas acreditam que só porque você é uma pessoa pública têm direito de meter a colher de pau no seu bolo, ou colocar uma de fermento em sua relação. Isso me incomoda um pouco.

Meu marido não era uma pessoa pública e foi obrigado a se tornar uma. Hoje, quando ele fala alguma coisa, as pessoas levam para outro lado, se eu ficar dois ou três dias sem postar algo com ele já acham que estamos nos separando. Se eu aparecer sem aliança, as pessoas acham que acabou. Elas encaram aliança como algo muito importante. Já vi tantas famosas com alianças grossas no dedo e que hoje nem são mais casadas. Não é isso que define meu estado civil.

E vocês tiveram essa conversa antes da relação? Do 'olha, eu sou famosa e você vai ganhar os holofotes também'?
Sinto que no início o Kayque achava que namorava a Pepita, mas depois ele começou a entender que tinha uma relação com a Priscila, a criadora desse personagem. Acredito que com isso ficou mais fácil pra ele. Ele ficava em choque quando via a Pepita dando selinho em alguém no palco, por exemplo.

Mas mostrei com quem ele é casado. A Pepita tem uma vida completamente diferente da minha, é uma irmã, uma personagem que criei com carinho. Hoje em dia ele só se incomoda quando nos envolvem em situações que são mentira, que invadem nossa privacidade.

Mas isso nunca abalou nossa relação, porque não temos o rabo preso um com o outro. Somos muito resolvidos. O que é maravilhoso. Tudo o que vivemos, desde o começo, foi muito verdadeiro.

Para além da vida de casada, você também é mãe. Sempre foi um sonho?
Sempre quis ser mãe e a maternidade chegou na hora certa para mim. Tenho 40 anos, moro no país que mais mata travestis no mundo e a expectativa de vida para pessoas como eu é de 35 anos. Cheguei aos 40 mais abusada do que nunca, mãe de um menino.

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Vou ensiná-lo o que é ser filho de uma travesti e com orgulho. Mas já travei diversas vezes. Aprendi a ser mãe perdendo o sono, entendendo os diferentes tipos de choro, trocando fralda, dando banho... Hoje, se alguém disser que não sou mãe, bato no peito e grito que sou uma leoa. Me respeite.

Pepita e Kayque são pais dos Lucca
Pepita e Kayque são pais dos Lucca Imagem: Reprodução/Instagram

Mas há dúvidas sobre a sua maternidade? Você é uma mulher que adotou, claro que é mãe...
Não é tão fácil assim. Passo por muitas situações. Há pouco tempo tentei contratar uma profissional para cuidar do meu filho e não consegui. Batem nas minhas costas na fila de prioridade, quando estou com meu filho no colo, dizendo que estou no local errado. Não é tão simples. Mas sou grandona e abusada. É difícil me derrubar.

E você tem medo de como isso vai impactar a vida de seu filho? Ele ainda é muito pequeno, mas daqui a pouco vai começar a entender o preconceito?
Não. Eu e o Kayque estamos esperando o momento certo para ter essa conversa com nosso filho. E tenho certeza que será maravilhoso.

O Lucca é uma criança abençoada, sabe e entende quem são seus pais. Sabe de qual família ele vem.

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