'Perdi a voz após um acidente surfando; tempos depois, me tornei cantora'

Julia Levy, 28, só queria aprender a surfar durante a pandemia. O que ela não imaginava era que sua experiência com a prancha a deixaria sem voz por quase um ano. O susto foi tão grande que ela decidiu deixar o emprego no mercado financeiro para se arriscar em uma carreira que sempre amou: o canto.

Mesmo sem apoio da família e do marido —que achavam que era muito arriscado mudar de carreira completamente—, ela resolveu mostrar para o mundo o poder de sua voz. "Pensava que até poderia não ser boa o suficiente, não conhecer nada do mercado, mas queria recomeçar", disse. O processo de recuperação da voz foi longo, assustador e com diversos desafios. À reportagem, ela explica o que aconteceu:

"Sempre fui uma criança tímida, mas comecei a cantar e fazer teatro aos 13 anos. Assim, encontrei uma forma de expor meus sentimentos, era quase uma terapia. Encarava o cantar como algo só meu, que fazia sozinha. Não pensava em ser cantora. Pensava que o mercado já tinha muitas pessoas boas e não acreditava no meu potencial.

Apesar de ter feito moda na faculdade, não gostei. Fui trabalhar no mercado financeiro, pois sempre estive envolvida nos investimentos da minha família. Gostava muito, então fiz uma pós-graduação em administração de empresas para continuar neste ramo. Estava bem mais feliz.

Eis que chegou a pandemia. Meus pais foram morar na praia, porque estavam muito preocupados com a doença. Poucos meses depois, eu e meu marido —que era namorado na época—, decidimos passar um tempo com eles, o que acabou se tornando dois meses.

Como estávamos próximos ao mar, e eu sempre quis aprender a surfar, meu marido resolveu me ensinar um pouco. Ele me deu uma 'aula' com longboard um dia e assim seguimos até eu achar que conseguiria pegar onda sozinha, sem ele ao meu lado.

Fomos para uma praia diferente e as ondas estavam bem mais fortes. Entrando no mar, estava com medo de levar a prancha. Segurei-a com força, mas veio uma onda e me empurrou. E fez com que eu batesse a prancha bem no final do meu pescoço.

Não sei descrever o que senti. Era como se fosse um engasgo, mas não conseguia respirar. Quando puxei o ar, não tinha voz para pedir ajuda. Meu marido já estava mais no fundo do mar, ele não viu o que tinha acontecido comigo. Parecia que ia morrer. Foi tão traumático que esqueci dos detalhes.

Julia Levy saiu do mercado financeiro para a música após um acidente que tirou sua voz
Julia Levy saiu do mercado financeiro para a música após um acidente que tirou sua voz Imagem: Reprodução/Instagram
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Quando a sensação ruim passou e fui explicar o que tinha acontecido, eis que veio o susto: minha voz não saía. No carro, de volta para casa, fui escrevendo para me comunicar com ele. Pedi que ligasse para um otorrino que eu conhecia para saber o que tínhamos que fazer. O médico disse que minha voz voltaria, que eu podia ficar tranquila.

Meus pais não queriam que eu voltasse para São Paulo por causa da pandemia, mas conforme o tempo foi passando, estava cada vez mais angustiada. Gosto de falar, de colocar meus sentimentos para fora e minha voz não saía.

Dez dias após o acidente, fui ao médico, porque ainda estava completamente sem voz. Ele me examinou e, mais uma vez, disse que iria voltar. Que demoraria cerca de 10 dias. Novamente, não melhorou. Na terceira consulta, ele falou que a situação era mais grave.

Me falou que não tinha dado para ver antes, mas que eu estava com paralisia em um dos lados das pregas vocais. É como se um pedacinho delas ficasse sempre aberto, sem se mexer. E como não fechava, o som não saía. Comecei a chorar muito na consulta.

Fiquei com muito medo daquele diagnóstico e decidi procurar outros médicos. Fui a três, e cada um me deu uma solução diferente para o problema. Eram sempre cirurgias completamente diferentes e invasivas. Eles nem sabiam se minha voz ia voltar. Um dos especialistas me disse que nunca tinha visto uma lesão como a minha por trauma. Que era comum ver casos como o meu em meio a cantores.

Entre as três opções de tratamento que me apresentaram, escolhi a menos invasiva: seria intubada e o médico aplicaria ácido hialurônico nas cordas vocais paralisadas, para deixá-las mais 'gordinhas'. Com isso, elas fechariam e eu conseguiria emitir sons. E mesmo assim, precisaria fazer muita terapia vocal para conseguir voltar a falar —quase como uma musculação para torná-las fortes novamente.

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E deu certo. O resultado não foi imediato Comecei a falar no pós-cirúrgico de forma bem rouca e fui voltando ao normal gradativamente. Para minha voz ficar novamente clara foi necessário quase um ano.

Após perder a voz em um acidente no mar, Julia Levy quis se dedicar a carreira de cantora
Após perder a voz em um acidente no mar, Julia Levy quis se dedicar a carreira de cantora Imagem: Divulgação

Quando minha voz voltou, decidi que queria usá-la para algo de que gosto. Eu ia, enfim, cantar. Posso não ser boa o suficiente, não conhecer nada do universo da música e desse mercado, mas queria recomeçar.

Foi um processo, não foi de um dia para o outro. Fui entendendo como poderia fazer, se era um ep ou um single, como entregar meu material. Em 2022, gravei pela primeira vez. Já fiz shows, tenho músicas originais escritas —e uma que será lançada agora em abril.

Nunca estive tão feliz com meu trabalho, mesmo estando só no comecinho. Sinto que estou fazendo o que devo fazer."

Ácido hialurônico para a voz?

Para entender o que aconteceu com Julia é preciso saber como é o funcionamento das cordas vocais. "Elas ficam dentro da laringe e é a sua vibração que produz som. Quando respiramos, elas estão abertas, para o ar poder passar. Quando tossimos, elas fecham, para que não haja risco de nada ir para o pulmão", explica Adriana Hachiya, otorrinolaringologista pela Faculdade de Medicina da USP.e presidente da Academia de Laringologia e Voz (ABORL-CCF)

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Para falarmos, segundo a especialista, elas precisam estar em uma posição chamada fonatória, em que ficam juntas no centro da laringe. Para emitirmos som, elas precisam estar encostadas umas nas outras. "Quando uma pessoa toma uma pancada no pescoço, ela pode ter um hematoma que, assim que for reabsorvido, a voz voltará. Contanto que não tenha danificado o nervo responsável pela movimentação das cordas", diz Hachiya.

Algumas vezes, em traumas como esses, o nervo pode voltar a se mexer entre seis meses e um ano. E é nesses casos que o paciente pode esperar ou fazer aplicação do ácido hialurônico para agilizar o processo, um princípio ativo que estamos mais acostumados a ver em produtos de pele. Mas não é incomum. Pelo contrário: é uma estratégia usada pelos especialistas para soluções rápidas e de curto prazo.

"É uma substância que é absorvida pelo corpo, tem a mesma ação com rugas, por exemplo, preenchendo-as. O músculo que está paralisado em uma posição se preenche e volta para o centro da laringe", diz Hachiya. Contudo, essa solução é temporária.

"O alívio é temporário, para dar tempo da corda vocal do paciente se recuperar e voltar a se movimentar naturalmente. Existem casos em que o ácido precisa ser reaplicado", diz Hachiya. No caso de Julia, provavelmente sua voz estava se recuperando, por isso só precisou de uma única aplicação.

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