Pais levam 19 anos para descobrir doença do filho: 'Aceitei a realidade'

Rejany Machado Pena e José Carlos da Silva, moradores de Goiânia, se tornaram pais no dia 29 de novembro de 2000. Durante toda a gravidez, apesar de a futura mamãe ter de lidar com um cisto de ovário que só crescia, o bebê parecia bem.

Mas tudo mudou após o nascimento. Com poucos dias de vida, o pequeno João Pedro teve um episódio de hipoglicemia severa que o levou a ficar alguns dias na UTI. Nos meses seguintes, ele começou a apresentar uma série de sintomas preocupantes: falta de tônus muscular, atraso no desenvolvimento e problemas respiratórios, entre outros.

Sua família viveu uma verdadeira saga em busca de respostas. Foram muitas consultas com os mais variados especialistas e uma série de exames realizados, mas sem que se chegasse a um consenso sobre o que o menino tinha. Foi só quando João Pedro já era um adulto, com 19 anos, que o diagnóstico veio: deficiência da descarboxilase dos aminoácidos L-aromáticos (AADC), uma doença genética ultrarrara —e consequentemente pouco conhecida—, grave e sem cura.

No depoimento a seguir, Rejany conta em detalhes a trajetória da família ao longo de mais de duas décadas e os cuidados que o filho, hoje com 23 anos, recebe:

"O João Pedro nasceu prematuro, em novembro de 2000. Foi um parto um pouco complicado porque tive um cisto de ovário que cresceu junto. Era como se eu tivesse dois bebês na barriga.

Logo após o nascimento, aparentemente estava tudo bem, mas, no segundo dia, ele começou a convulsionar. Foi direto para a UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e ficou lá por quatro dias.

A explicação que os médicos deram era que o João tinha tido uma hipoglicemia severa. Ele entrou na UTI com glicose de 15 mg/dL, e era isso o que tinha desencadeado a convulsão.

Depois desse episódio, passamos a investigar a causa. Só que as coisas foram se complicando. Quando ele estava com três meses, notamos que não conseguia sustentar o tronco, era muito molinho. Eu tentava colocá-lo sentado, e ele não ficava.

Imagem
Imagem: Arquivo pessoal

A primeira suspeita foi que era um atraso em decorrência de algum problema neurológico causado pela hipoglicemia. Passamos por alguns neurologistas e eles relataram que possivelmente o episódio havia lesionado células microscópicas. Só que fazíamos exames cerebrais e dava tudo normal.

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Nessa época eu pensava: amanhã ele vai firmar o corpo, vai começar a engatinhar, vai balbuciar palavras, vai andar, vai falar... Tinha essa esperança. Só que esse dia nunca chegou.

Conforme ele foi crescendo, fizemos todos os testes genéticos que estavam disponíveis para ver se tinha alguma doença de origem genética, e nada, sempre dava negativo. E os sintomas iam piorando.

Com 3, 4 anos, ele apresentava atraso cognitivo e quase nenhuma capacidade motora. A hipotonia (redução do tônus muscular) foi ficando cada vez mais severa, a ponto de ele começar a ter luxações.

Por conta da sua musculatura ser muito mole, frouxa, os ossos acabam ficando em posições inadequadas. Por exemplo, a cabeça do fêmur foi para trás, se alojou no bumbum, e causava muita dor.

João Pedro com o pai
João Pedro com o pai Imagem: Arquivo pessoal

Ele também chorava bastante, sem causa definida, não conseguia falar, se comunicar. A alimentação era outro problema, por conta da disfagia, que é uma disfuncionalidade de engolir e pode fazer a comida ir para o pulmão.

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Os médicos queriam colocar uma sonda na traqueia para que ele se alimentasse, mas não permiti por ser muito invasivo. Cheguei a ouvir de uma médica que ela não poderia mais tratar o meu filho porque eu não deixava que ela fizesse nada.

Mas anjos foram aparecendo no caminho e, com a ajuda de uma fonoaudióloga maravilhosa, que inclusive está conosco até hoje, conseguimos fazer com que ele comesse alimentos pastosos sem a necessidade de nenhuma sonda.

Durante toda a sua vida, o João também teve crises oculogíricas, que são movimentos involuntários que os olhos fazem, parece uma convulsão. No começo, elas duravam meia hora, mas chegou em um padrão de oito horas de descargas elétricas por dia.

Essa foi uma das partes mais complicadas, acho até que cheguei à beira da loucura. É difícil demais ver o seu filho passando por tudo isso e não saber nem qual é a causa.

Mini UTI em casa

Desde pequeno, o João também apresentou muitos problemas respiratórios. Passamos por várias internações devido a quadros de pneumonia de repetição, a primeira quando ele tinha menos de um ano de idade. Tudo nele era mais agudo, qualquer infecção ou resfriado.

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Ele tinha por ano cerca de cinco ou seis episódios de pneumonia e quadros de infecção acompanhados por uma quantidade enorme de secreção, era algo assustador. Pelo menos duas ou três vezes no ano precisava ser internado. E diversos tratamentos não faziam efeito, às vezes até prejudicavam mais.

Mas fomos caminhando, fazendo tudo o que podíamos, em especial muita fisioterapia respiratória. Quando o João tinha 13 anos, eu e meu marido conseguimos montar uma mini UTI em casa. Com a diminuição das idas ao hospital, também diminuiu o número de intervenções mais invasivas as quais ele era submetido.

João Pedro com o bipap
João Pedro com o bipap Imagem: Arquivo pessoal

Nessa época, ele passou a usar bipap (aparelho que funciona como respirador mecânico). Num primeiro momento, os médicos queriam colocar um tubo na traqueia para ajudá-lo a respirar, mas eu não queria que o João sofresse mais e, com a fisioterapia respiratória, conseguimos que ele usasse apenas a máscara no rosto.

Foi um longo período de adaptação, mas agora já faz oito anos que ele utiliza o aparelho dessa forma, e com sucesso. Agradeço sempre por ter conseguido evitar que passasse por muitos procedimentos mais invasivos.

A descoberta do diagnóstico

Ao longo dos anos, procuramos uma infinidade de médicos atrás de respostas. Pediatras, neurologistas, ortopedistas, gastroenterologistas, pneumologistas... Foram consultas em Goiânia, onde moramos, em Brasília, no Rio de Janeiro e em São Paulo.

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Tinha esperança de que quando soubesse o que era, isso iria mudar a nossa vida. O João iria fazer um tratamento e melhorar, ficar bom. Mas os anos se passaram e os exames não indicavam nada, ninguém sabia o que ele tinha.

Até que desisti dessa busca e decidi que iria viver um dia por vez, da melhor forma possível, cuidando do meu filho com todo o amor e sem criar expectativas. Optei por proteger o meu emocional e trabalhar com o que tinha em mãos, que era lidar com os sintomas dele e manter um padrão de cuidado.

Tivemos algumas intercorrências, o que é normal, mas de modo geral posso dizer que tudo fluiu bem, tanto que as crises de pneumonia diminuíram de 5-6 para 1-2 por ano e se tornaram mais brandas e fáceis de lidar.

A UTI em casa seguiu funcionando, com o apoio de uma equipe multidisciplinar bastante sincronizada, e assim fomos caminhando. Até que em 2019, o neurologista Hélio Van Der Linden, aqui de Goiânia, que cuida do nosso caso até hoje, suspeitou de uma doença genética e nos disse que tinha um exame nos Estados Unidos que poderia confirmar.

Página do livro que o pai de João Pedro escreveu
Página do livro que o pai de João Pedro escreveu Imagem: Arquivo pessoal

Por não ser invasivo, apenas coletar sangue e enviar para o laboratório, eu e meu marido aceitamos fazer. Mas, como todos os testes até então sempre vinham negativos, não criamos expectativas.

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Só que dessa vez foi diferente. Quando chegou o resultado, havia um diagnóstico: deficiência da descarboxilase dos aminoácidos L-aromáticos (deficiência de AADC). Finalmente, depois de 19 anos, soubemos qual era a doença do João.

O problema é que uma doença extremamente rara, portanto pouco conhecida pelos médicos, e sem tratamento específico. Se tivéssemos descoberto logo no início, havia chance de controlar os sintomas, mas, nessa altura, não havia muito mais a ser feito, ele não iria melhorar.

Naquele momento, ao invés de sofrer, entendi que, através da nossa história e da nossa experiência, poderíamos contribuir para que outras famílias não passassem pelo que passamos. Meu marido até escreveu um livrinho para contar isso tudo e, assim, podermos compartilhar o dia a dia de uma criança rara —que nos ensina de uma forma extraordinária a vencer os obstáculos— e, ao mesmo tempo, incentivar a inclusão.

Não tivemos um diagnóstico precoce e nem a chance de controlar a progressão da doença. Mas, agora, outros pais podem ter essa oportunidade.

Há três anos tivemos conhecimento de uma terapia gênica que é realizada nos EUA. No Brasil, a Anvisa ainda não aprovou.

O João estava com 21 anos e, depois de muito pensar e pesquisar, eu e o pai dele decidimos não fazer. É uma cirurgia bastante invasiva e seria uma opção se ele fizesse antes dos sete anos. Com a idade mais avançada, com todas as perdas que já teve, não faria muita diferença.

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Sofri demais por isso, mas é a nossa realidade. E eu aprendi a aceitá-la. Aqui, seguimos vivendo um dia por vez, sempre agradecendo por podermos proporcionar o melhor para o João.

Ele não fala e depende de nós para tudo, mas posso afirmar com toda certeza que é feliz. Ele sabe o quanto é amado, tem um sorriso encantador e muita vontade de viver. Costumo dizer para ele: 'João, você é PhD em ser resiliente'. E eu e meu marido somos muito gratos por termos esse rapaz tão especial em nossas vidas."

O que é a deficiência de AADC

A deficiência da descarboxilase dos aminoácidos L-aromáticos (AADC, na sigla em inglês) é uma doença genética autossômica recessiva que faz parte do grupo dos erros inatos do metabolismo.

Nela, uma mutação genética (neste caso no gene DDC) diminui a produção da enzima AADC, fundamental para a fabricação dos neurotransmissores serotonina e dopamina —quando eles estão em falta, isso interfere na maneira como os neurônios se comunicam.

"A deficiência de AADC é uma condição ultrarrara. A estimativa é que mais ou menos 200 pessoas tenham o diagnóstico no mundo todo", comenta Ida Vanessa Schwartz, professora titular do Departamento de Genética do Instituto de Biociências da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), presidente da SBGM (Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica) e coordenadora do Instituto Nacional de Doenças Raras.

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O número é baixo desse jeito, segundo ela, porque a patologia não tem uma manifestação externa —como acontece na síndrome de Down—, o que acaba dificultando a suspeita e afetando o diagnóstico.

"O bebê com deficiência de AADC nasce bem. As manifestações só acontecem mais tarde e ainda podem ser confundidas com outras doenças, por isso os médicos não desconfiam de imediato", aponta Schwartz.

Os sintomas da doença costumam se manifestar nos primeiros meses de vida, e o portador pode ter alguns ou todos eles. Os principais são:

  • Hipotonia (redução do tônus muscular)
  • Atraso global do desenvolvimento neuropsicomotor, como incapacidade para caminhar, engatinhar e falar
  • Deficiência intelectual
  • Crises oculogíricas (movimentos oculares involuntários)
  • Suor excessivo
  • Falta de energia
  • Problemas respiratórios, digestivos e comportamentais
  • Dificuldade para dormir

O diagnóstico, quando há suspeita, é feito por meio de exame genético que analisa o gene DDC. A deficiência não tem cura, mas o tratamento pode aliviar os sintomas.

"Quanto mais cedo for iniciado, mais conseguiremos fazer o controle e garantir uma melhor qualidade de vida aos pacientes", enfatiza Schwartz. "São prescritos remédios que aumentam a concentração de dopamina e serotonina no cérebro. Também pode ser usada vitamina B6 e é altamente recomendado o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar, formada por terapeuta ocupacional, fisioterapeuta e fonoaudiólogo."

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Ela complementa que existe uma terapia genética aprovada para essa condição, mas que, por enquanto, está disponível apenas nos EUA. O procedimento consiste na introdução de um vírus inócuo, carregado de uma cópia "boa" do gene DDC, no cérebro do paciente para que este consiga produzir a enzima AADC.

"É algo complexo e ainda limitado, mas estudos mostram que as crianças que foram submetidas a ele passaram a produzir serotonina e dopamina e melhoraram do ponto de vista clínico", relata a médica. "É uma esperança a mais para as famílias, mas, mesmo sem isso, já que não está aprovado no Brasil, o importante é que os médicos tenham conhecimento da doença e o diagnóstico seja feito o mais precocemente possível", finaliza.

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