Boris Casoy sobre pólio: 'Me transporto para aquela época, é assustador'

"Quando eu tinha 3 anos, fizemos uma viagem ao Rio de Janeiro para procurar uma senhora americana que era massagista. Ela ensinou minha irmã mais velha, que era auxiliar de enfermagem, uma massagem, que era uma tentativa de tratamento da pólio."

O jornalista Boris Casoy lembra de detalhes dessa viagem: a chegada à cidade, a porta do trem com janelas de vidro fechadas, o nome do cachorro na casa da senhora, o Whisky.

Outra lembrança de infância vem como um flash: ele ainda pequeno sentado no colo do pai, que balançava um relógio de bolso na frente do rosto do filho. "Tique-taque", ia dizendo.

São memórias tão marcantes quanto os efeitos da poliomielite, doença que ele e a irmã gêmea contraíram com um ano de idade. Era 1942, e a vacina contra a infecção ainda estava a 13 anos de ser lançada.

Naquela época, não se sabia muito sobre a doença, o que ela causava e como tratar. Tudo era feito por intuição, segundo crenças e condições —história que se repetiu em 2020 com a covid-19.

"Minha mãe dizia que era um bicho, um micróbio. Ficamos com pólio dias depois do nosso aniversário, e ela achava que esse bicho chegou junto com os presentes que ganhamos. Mas isso era uma suposição", relata Casoy a VivaBem.

Sem conhecimento do que é e de como se contrai, foi rápido observar surtos e epidemias pelo Brasil. Casoy se recorda dos amigos que moravam na rua de casa e de crianças na clínica onde costumava ir com a mesma doença.

'Perspectivas péssimas'

O que restava para as famílias era a esperança, seja de remédio, tratamento ou cura. "A perspectiva era de ter o resto da vida com sina", diz o jornalista, que não lembra de sentir dor, mas paralisação e sensibilidade na pele.

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Um dos artifícios para amenizar os efeitos da pólio, que deixa músculos moles e causa paralisia, era a massagem. "Ia uma senhora em casa fazer. Ela aquecia a perna com um aparelho, passava talco."

Tratamentos mais rigorosos envolviam colocar um pano molhado em água fervente sobre a perna afetada, que doía e queimava. Com isso, sim, ele sofria.

Um sinal de esperança veio quando Casoy e a irmã tinham 9 anos de idade. A mãe soube de um médico nos EUA que fazia cirurgia em crianças com pólio. E lá foram eles. Foram dois cortes na perna direita dele, um na lateral externa e outro no joelho.

"Tenho 45 pontos, 11 deles no joelho. E alguma coisa se transformou lá dentro que me propiciou contrair o músculo, me devolveu todo ou quase todo o movimento, embora mais débil", conta.

Após o procedimento, eles ainda permaneceram no hospital seguindo alguns tratamentos, mas o principal era o choque elétrico, que estimulava o músculo. Banheiras com jato de água, mais massagens e ginástica passiva completavam os cuidados.

Vestígios

"Não consigo definir quais virtudes, defeitos, hábitos, costumes, loucuras, o que me marcou, mas marcou", relata o jornalista. "Eu ainda me transporto para aquela época, é assustador."

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O impacto da poliomielite não foi só físico. Antes da cirurgia, Casoy andava com dificuldade e usava uma espécie de bota feita com estruturas metálicas que sustentava a perna e não a deixava dobrar.

"Na escola, me chamavam de mula manca", relata, expressando o desafio de lidar com a crueldade da inocência infantil. Mas havia também comentários de adultos. "Ouvi uma professora do jardim de infância falando para outra 'coitadinho', uma coisa que feria muito."

A consciência de ser diferente não diminuía o fato de não poder brincar, correr e participar das atividades físicas junto com as outras crianças. Quando participava, era o "café com leite".

"Voltava pra casa e falava pra minha mãe. Ela, que era pessoa simples, aldeã russa, chorava, e me sentia culpado por fazer minha mãe chorar", diz. E lamenta que, naquela época, ir ao psicólogo era considerado "coisa de louco".

"Eu não fui submetido, mas acho que precisava de auxílio psicológico."

Fisicamente, Casoy anda com certo desequilíbrio e tem uma perna mais fina do que a outra. Quando adolescente, tinha vergonha de mostrá-la, mas com o tempo entendeu que o mais importante eram as habilidades conquistadas.

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"Eu voltei a andar, jogava futebol, já podia correr mal. Para mim, tudo era ganho, porque fui da paralisia que me impedia de brincar para fazer tudo. Virei um moleque terrível", brinca. "Nasci ali como criança."

Vacinação é primordial

A vacina é a única proteção efetiva contra a poliomielite. Numa época em que o imunizante está disponível a todos, diferente dos tempos de Casoy, é preocupante que ainda exista o risco de a doença provocar surtos e epidemias.

Mas desde 2016, a cobertura vacinal contra a pólio vem caindo no Brasil. No ano passado, ficou em 70,7%. O esquema vacinal está disponível no SUS em cinco etapas: aos dois, quatro e seis meses de idade, mais dois reforços aos 15 meses e aos 4 anos.

"A baixa cobertura vacinal vem da desinformação, de notícias falsas, e ela permite que o vírus fique circulando entre todos", alerta a fisiatra Alice Rosa Ramos, superintendente de Práticas Assistenciais da AACD. "Deixar de vacinar é uma falta de responsabilidade imensa."

Ela destaca que a proteção é coletiva, inclusive para pessoas que não podem tomar a vacina. A imunização é contraindicada para imunodeprimidas, contatos de pessoa com HIV ou imunodeficiência, aquelas com histórico de paralisia flácida associada à dose anterior da vacina oral da poliomielite.

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"Não podemos deixar que doenças já erradicadas, como pólio e sarampo, voltem porque também temos um sistema de saúde muito onerado", acrescenta a especialista. "Se hoje voltar com a mesma condição clínica, vai continuar tratando só os sintomas, porque não tem como parar a doença."

Hoje, o tratamento de pessoas com pólio também está diferente. Fisioterapia, exercícios passivos, alongamentos e cirurgias são os recursos disponíveis. As terapias visam estimular a musculatura e evitar deformidades, enquanto o procedimento cirúrgico alinha ossos e músculos alterados por causa da doença.

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