'Zureta': jornal feito por pacientes de Caps do PR dá autonomia ao grupo

São 10 horas da manhã. Os participantes da oficina chegam à sala, sentam-se e começam a discutir sobre o andamento da edição em pauta. A metodologia lembra o funcionamento de uma redação jornalística. Estão prontos para virarem repórteres.

Dentro da programação da semana, toda terça-feira está marcada a reunião do "Zureta", um jornal produzido pelos próprios pacientes do Caps III (Centro de Atenção Psicossocial) de Londrina, no Paraná. O periódico busca não apenas informar os seus leitores, mas também melhorar a condição psicossocial da sua equipe.

A data de criação e o nome do fundador do Zureta é um mistério para os atuais profissionais do Caps. Uma enfermeira aposentada, Fabia Helena, disse que coordenava a atividade entre 1998 e 2000, mas que não tem mais informações sobre sua criação. "O objetivo era uma atividade terapêutica estimulando organização do fluxo do pensamento, que é uma grande dificuldade do paciente psiquiátrico", diz.

Mais de 20 anos depois, o jornalzinho continua a circular internamente e entre amigos e familiares dos pacientes.

A frequência entre a publicação de uma e outra edição do jornal é, em média, de cinco meses
A frequência entre a publicação de uma e outra edição do jornal é, em média, de cinco meses Imagem: Luana Biruel

"Pode parecer simples, mas, para muitos deles, pegar ônibus fora da rota e combinar de encontrar com o colega, não é. Antigamente, aqui era o ponto de saída para fazerem as entrevistas. Hoje, eles trocam telefones, combinam melhor o local, o horário e isso passa segurança", diz a psicóloga Thelma Martins, atual coordenadora do Zureta.

Com a publicação, também há o aperfeiçoamento das habilidades que foram prejudicadas pela ação da doença e o aumento da autonomia. "Tudo é sempre baseado no incentivo. Por exemplo, se apresentam dificuldades na montagem do texto, perguntamos se não gostariam de voltar a estudar ou até fazer um curso de computação básica. Eles têm a liberdade de decidir a maneira como vão usar o conhecimento adquirido na oficina", diz Martins.

Como é a produção do Zureta

A produção de um exemplar do Zureta não leva somente algumas horas para ser concluída. Na verdade, dura, em média, cinco meses. Esse procedimento pode ser dividido, basicamente, em quatro etapas que se concretizam conforme as reuniões semanais acontecem. São elas:

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1. Reunião de pauta: o primeiro passo é a escolha dos assuntos que serão abordados. De acordo com os integrantes do jornal, o ambiente é democrático. Após as sugestões serem feitas, eles votam e as mais votadas entram no script. Os palpites tratam de diversos temas. Entre eles, estão remédios, vida saudável, autoridades, religião e esporte, além de espaço para piadas, jogos e culinária. Na edição mais recente, falaram sobre diabetes, o medicamento olanzapina (indicado para tratamento de esquizofrenia e outras psicoses em adultos), o mundo da aviação, as cores da moda.

2. Separação dos grupos: com os assuntos escolhidos, a etapa seguinte é separar quem ficará responsável por cada texto. A divisão acontece de maneira simples: quem sugeriu faz. A partir daqui, atuam em duplas. Assim, podem se ajudar na sequência da atividade, desenvolver o trabalho em grupo e a tolerância. "Nem sempre as duplas são harmônicas, às vezes elas têm ideias completamente diferentes", explica a psicóloga Thelma Martins, atual coordenadora do Zureta.

3. Realização das matérias: essa é a parte mais desafiadora e duradoura do processo. Inicialmente, os repórteres do Caps III pesquisam sobre o tema, depois selecionam um entrevistado, marcam a entrevista, elaboram as perguntas e, se for o caso, vão até o local. Com os dados coletados, ou melhor, com a apuração completa, chega a hora de escrever. Um computador disponibilizado pela unidade é usado para transcrever as informações obtidas e construir o texto.

4. Revisão e impressão: para revisar, o Zureta conta com o auxílio de alguns profissionais do Centro. O último passo é a impressão, feita em uma papelaria. As cópias são distribuídas internamente, entre amigos, familiares e os próprios entrevistados.

A seção de culinária também conta com degustação. Os pacientes costumam levar os pratos para a equipe provar
A seção de culinária também conta com degustação. Os pacientes costumam levar os pratos para a equipe provar Imagem: Guilherme Eduardo Morais

Com a edição finalizada e o nome de cada integrante registrado tanto na capa quanto nas respectivas matérias que fizeram, a pergunta que fica é: Qual é o sentimento?

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S., de 35 anos, classifica como uma grande aventura. "Passamos meses e meses, mas quando chega o resultado final, vale a pena, é bom", diz.

Outros participantes, mais tímidos, resumem: "Me sinto feliz", "Fico orgulhoso", "Realizado" e "Viramos pessoas importantes".

C., de 63 anos, conta que não imaginava que tinha condição de ajudar. "Me sinto privilegiado em poder participar do jornal. Penso que é uma forma de colaborar com o Caps e de extravasar, apesar da minha deficiência. É muito bom. Aproveito também para ler, porque fico bem informado. Hoje em dia, a informação é tudo."

O que são os Caps?

Os Centros de Atenção Psicossocial, ou Caps, realizam prioritariamente atendimento às pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, seja em situações de crise ou nos processos de reabilitação psicossocial.

Existem seis tipos de Caps, segundo a complexidade dos atendimentos e o tamanho da população:

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Caps I: atende pessoas de todas as faixas etárias que apresentam intenso sofrimento psíquico decorrente de transtornos mentais graves e persistentes, incluindo aqueles relacionados ao uso de substâncias psicoativas, e outras situações clínicas que impossibilitem estabelecer laços sociais e realizar projetos de vida. Indicado para municípios ou regiões de saúde com população acima de 15 mil habitantes.

Caps II: também atende prioritariamente pessoas em intenso sofrimento psíquico decorrente de transtornos mentais graves e persistentes, mas é indicado para municípios ou regiões de saúde com população acima de 70 mil habitantes.

Caps III: proporciona serviços de atenção contínua, com funcionamento 24 horas, incluindo finais de semana e feriados. Possui acolhimento noturno e retaguarda clínica. Indicado para municípios ou regiões de saúde com mais de 150 mil habitantes.

Caps i: voltado para atendimentos de crianças e adolescentes. Indicado para municípios ou regiões de saúde com mais de 70 mil habitantes.

Caps ad Álcool e Drogas: atende pessoas de todas as faixas etárias que apresentam intenso sofrimento psíquico decorrente do uso de crack, álcool e outras drogas, e outras situações clínicas que impossibilitem estabelecer laços sociais e realizar projetos de vida. Indicado para municípios ou regiões de saúde com população acima de 70 mil habitantes.

Caps ad III Álcool e Drogas: atende adultos, crianças e adolescentes, considerando as normativas do Estatuto da Criança e do Adolescente, com sofrimento psíquico intenso e necessidades de cuidados clínicos contínuos. Serviço com no máximo 12 leitos de hospitalidade para observação e monitoramento, de funcionamento 24 horas, incluindo feriados e finais de semana; indicado para municípios ou regiões com população acima de 150 mil habitantes.

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Como buscar os serviços?

Os serviços de saúde mental oferecidos pelo Caps funcionam abertamente e atendem tanto demandas encaminhadas por setores distintos, como UBS, UPA e hospital, quanto demandas espontâneas de pessoas que buscam alguma assistência a qualquer momento.

Qual a importância das oficinas terapêuticas?

As diversas oficinas terapêuticas representam um instrumento importante de ressocialização, reabilitação, reinserção social, e atuam em concordância com o PTS (Projeto Terapêutico Singular) de cada pessoa em sofrimento psíquico, o qual atende os déficits que a doença causa. Elas trabalham aspectos variados da vida, como relações sociais, convivência, coordenação motora, comunicação, além de promover a independência dos pacientes.

Fontes: Thelma Martins, psicóloga formada pela UEL (Universidade Estadual de Londrina), especialista em atendimento clínico e neuropsicologia; Regina Rezende Machado, enfermeira doutora em ciências da saúde, professora adjunta, docente do programa de mestrado e coordenadora da área de saúde mental do Departamento de Enfermagem da UEL; Ministério da Saúde.

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