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'Tive crise de choro e falta de ar': ódio a sons tem nome e não é frescura

Misofonia é uma condição de aversão a alguns sons - Istock
Misofonia é uma condição de aversão a alguns sons Imagem: Istock
Júlia Marques e Rebecca Vettore

De VivaBem, em São Paulo

19/06/2023 04h00

A consultora Leandra Hildevert, de 32 anos, já perdeu prova de vestibular, teve de sair no meio de uma sessão de cinema e desabou em uma crise de choro. Tudo isso por causa de uma condição que a acompanha desde a infância e poucos entendem: a misofonia.

A palavra significa aversão a certos sons do dia a dia, como os barulhos de mastigação. E não se trata de um incômodo corriqueiro. Quem tem misofonia sente, com frequência, raiva, angústia e ódio por causa de certos barulhos.

Em alguns casos, podem chegar a agredir o autor do som irritante. O distúrbio ainda causa isolamento: é comum que pessoas com misofonia evitem ambientes lotados, como transporte público e restaurante.

'Me irritam muito'

Leandra sente essa raiva desde a infância, principalmente com barulhos repetitivos feitos pela boca. "Gente mastigando, mascando chiclete, som de talher no prato o tempo todo... me irritam muito", diz ela.

Certa vez, Leandra não aguentou ficar em uma sala de cinema por causa de barulhos repetitivos de pessoas abrindo embalagens de comida. No metrô, só anda de fone de ouvido para evitar ruídos externos, mas já passou aperto quando esqueceu o equipamento e ficou do lado de um passageiro que mascava chiclete.

Ela perdeu prova de concurso público porque não aguentou ficar na sala ouvindo o barulho de um candidato que comia um lanchinho. O incômodo é tão grande que Leandra diz ter "vontade de explodir" quem faz o barulho.

No trabalho, ela tentava fugir de almoços com outras pessoas — mas o caldo entornou certa vez, com um colega próximo.

Fico tão irritada que uma vez me deu até crise de ansiedade no trabalho. A pessoa não parava de fazer um barulho [mordiscava um copo de plástico]. Eu já tinha pedido para parar e comecei a ficar muito nervosa. Me deu uma crise de choro, com falta de ar, comecei a hiperventilar, foi horrível
Leandra Hildevert

Ela chegou a dar uma xícara de presente para o colega na tentativa de que ele abandonasse o copo de plástico e, depois de levar a questão para um superior, Leandra conta que a situação piorou e outro colega passou a fazer o mesmo. "Ali eu explodi."

Em consulta com um psiquiatra, ele finalmente deu um nome para o incômodo. Foi a primeira vez que ela ouviu falar em misofonia. E o diagnóstico veio com certo alívio.

Eu nem sabia que existia um nome, falei para a psiquiatra: 'Tenho isso desde criança. Por que ninguém nunca falou nada pra mim?' As pessoas sempre me chamaram de frescurenta, mas não é frescura. É muito real e muito irritante

Uma psicóloga apresentou a ela um tratamento para a misofonia, mas Leandra não deu início porque, com a pandemia, passou a trabalhar em home office e os gatilhos das crises diminuíram. "Não sei mais se conseguiria trabalhar em escritório."

Entenda a misofonia

80% dos casos de misofonia são relacionados aos sons da alimentação (mastigação, deglutição, barulho de tomar sopa). Em seguida, as irritações estão relacionadas com inspiração (respiração ofegante, assoar o nariz e ronco), explica Tamires Lisi Simas, fonoaudióloga e especialista em audiologia.

Dependendo do nível da irritação, a misofonia pode ser acompanhada de outros problemas, como ansiedade, zumbido no ouvido, perda auditiva e transtorno obsessivo-compulsivo.

Também é conhecida como Síndrome da Sensibilidade Seletiva a Sons e foi descrita e reconhecida cientificamente perto dos anos 2000.

A síndrome não é incomum. No mundo, 15% dos adultos são afetados pela misofonia, segundo dados do Misophonia Institute. E, após um estudo feito pela King's College London com mais de 760 britânicos, pesquisadores chegaram à conclusão de que uma a cada cinco pessoas naquele país é afetada pela misofonia.

O incômodo não é banal. "A misofonia é mais do que apenas ficar incomodada com certos sons: é se sentir presa ou desamparada quando você não consegue se livrar desses sons e perder coisas por causa disso", explicou Silia Vitoratou, professora de psicometria e principal autora do estudo.

É sobre sentir que há algo errado com você pela maneira como reage aos sons, mas também não ser capaz de fazer nada a respeito. Pode ser um alívio descobrir que você não está sozinho
Silia Vitoratou

Mesmo sendo comum existir muitos misofônicos, o diagnóstico no Brasil não é feito com tanta frequência. Segundo Simas, um dos motivos para isso é a falta de profissionais especializados.

Diagnóstico e tratamentos

O diagnóstico pode ser feito em conjunto por fonoaudiólogos e otorrinolaringologistas, ou apenas pelos profissionais que cuidam da comunicação oral e escrita. Para chegar ao diagnóstico, o fonoaudiólogo analisa todo o histórico do paciente e faz diversos exames da parte auditiva.

Quando a misofonia está associada à parte auditiva, há três formas de tratamento:

  • estimulação sonora, também chamada de terapia sonora, em que são utilizados sons baixos e suaves;
  • aconselhamento terapêutico com sessões de orientações sobre misofonia;
  • uso de geradores de som portáteis ou que são incluídos nos aparelhos auditivos para estimular o paciente o dia todo com os sons que o incomodam e com o tempo deixá-los imperceptíveis.

Em casos em que avaliamos que o sistema auditivo não tem perda auditiva ou zumbido, é feito o exame de processamento auditivo central, que avalia as habilidades auditivas, mostrando como a pessoa entende o que escuta. Dependendo do resultado, posso encaminhar para avaliação com neurologista, visto que a misofonia pura tem relação com o sistema neurológico. Os pacientes podem apresentar distúrbios na região do cérebro responsável por reconhecer e interpretar os estímulos
Tamires Lisi Simas

Há casos em que a misofonia não envolve a parte auditiva, mas um aspecto psicológico. O tratamento é feito em conjunto com fonoaudiólogo e psicólogo, ou em casos mais graves, com psiquiatras.

Pacientes podem ter dificuldade de aderir ao tratamento. Depois que recebem o diagnóstico e a indicação do tratamento, é difícil mantê-los nas consultas até que obtenham a cura, segundo Simas. A desistência é causada pela longa duração do tratamento, que pode durar até um ano.

Uma das causas da misofonia pura (relacionada com o sistema neurológico) pode ser a hereditariedade.

Não há muitos estudos sobre a misofonia, mas alguns indicam que tem um componente hereditário relacionado. Por isso, é comum ter na mesma família mais de um misofônico. Quando a pessoa não tem essa perda auditiva e mesmo assim se irrita, não tem exatamente uma causa. Em alguns casos, os pacientes descobrem uma irritação a determinados sons ainda durante a infância e a levam até a vida adulta
Tamires Lisi Simas