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Mulheres autistas omitem traços do transtorno, mas isso afeta saúde mental

Bianca Galvão, 24, segurava traços do autismo - Arquivo pessoal
Bianca Galvão, 24, segurava traços do autismo Imagem: Arquivo pessoal

Guilherme Gama

Colaboração para o VivaBem

22/03/2022 04h00

Bianca Galvão, 24, descobriu seu diagnóstico de TEA (Transtorno do Espectro Autista) —omitido pelos pais— quando se identificou com uma explicação sobre masking, ou "camuflagem social", expressão que se refere a um conjunto de comportamentos adotados conscientemente ou não para mascarar os traços do autismo.

O termo vem ganhando popularidade, ainda que seja uma conhecida tentativa de esconder o autismo. Ele é mais comum entre mulheres, para se defender de preconceitos sociais aos quais estão expostas as pessoas neuroatípicas (ou atípicas). Entretanto, segundo os especialistas ouvidos pelo VivaBem, a tentativa de parecer ser quem não é pode ter alto custo para a saúde mental.

Mascarando estereotipias

Andar nas pontas dos pés, agitar as mãos e a cabeça são movimentos chamados de estereotipias, comportamentos repetitivos comumente observados no TEA. Essas podem ser entendidas como formas de aliviar a tensão —semelhante ao ato de agitar as pernas em um momento de ansiedade na sala de espera de um consultório médico. Principalmente na infância, as estereotipias podem indicar o autismo e, desde cedo, crianças aprendem a controlá-las para não serem vistas como diferentes.

Bianca conta que, quando criança, andava dando pontapés, e seu pai a repreendia pelo seu jeito diferente de andar. Segundo ela, "chutar o vento" era uma maneira confortável de sair à rua, mas que, com o tempo, aprendeu que não era a maneira socialmente vista como correta —e aqui, entra a camuflagem social. O masking consiste em disfarçar, suprimir ou esconder respostas de natureza social, sensorial, cognitiva ou motora de indivíduos com TEA, a fim de parecer mais neurotípico. Afinal, parecer autista pode levar ao bullying, isolamento social e à exclusão escolar.

Os especialistas destacam que isso pode ocorrer de forma consciente (quando o indivíduo consegue identificar e descrever o que está fazendo) ou inconsciente (quando não se identifica ou reconhece tal comportamento). São maneiras de driblar o capacitismo —discriminação e preconceito contra pessoas com deficiência.

Na adolescência, eu tinha muita estereotipia facial. Eu fazia muita careta e morria de vergonha porque notavam isso na escola. Eu aprendi a segurar, reprimir esses traços para parecer o mais 'normal' possível". Bianca Galvão.

Para parte dos autistas, manter contato visual é de grande desconforto e, por isso, é comum que busquem desviar o olhar enquanto se comunicam. Bianca conta que nunca gostou de olhar nos olhos, mas buscou mudar isso. "Uma vez me falaram que se você está conversando e não olha para a pessoa, é porque está mentindo. Eu fiquei com aquilo na cabeça e me forcei ao máximo olhar nos olhos."

Interação social e mulheres autistas

O TEA também é caracterizado por dificuldades em áreas do neurodesenvolvimento como comunicação e interação social. Por isso, é comum que quem tem autismo use desses conjuntos de estratégias de camuflagem para buscar interagir socialmente e cumprir normas e regras sociais. Para isso, vale de tudo: fingir expressões para aparentar interesse em conversas, ensaiar frases e gestos bem vistos, imitar falas, tom de voz e gostos de pessoas populares.

Para os psicólogos ouvidos pelo VivaBem, a camuflagem é mais frequente durante a adolescência e vida adulta, porque é o momento no qual o indivíduo tem habilidades de imitação complexa e sequencial ou de segmentos de regras bem estabelecidas. Nessa fase, a demanda social é maior: fazer amigos, namorar e ter boas relações no trabalho, por exemplo.

Bianca conta que, quando criança, andava dando pontapés, mas era repreendida pelo seu jeito diferente de andar - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Bianca conta que, quando criança, andava dando pontapés, e era repreendida pelo seu jeito diferente de andar
Imagem: Arquivo pessoal

Foi justamente na adolescência que Bianca começou a sair para eventos e festas e percebeu que era diferente das outras meninas. "Eu tinha dificuldade de fazer amizades, ficava com cara fechada e só hoje entendo que temos um 'rosto social' para as pessoas se aproximarem da gente. Na época, eu ficava quieta no meu canto", diz.

Ela conta que sempre foi vista como a garota estranha da escola onde estudava e aproveitou a mudança de colégio para mudar conscientemente seu comportamento, mesmo ainda sem saber do seu diagnóstico. "Eu fui ser uma nova Bianca, imitava o comportamento das outras pessoas que eram bem vistas", diz.

Por mais que o TEA seja diagnosticado quatro vezes mais no sexo masculino, o masking é mais relacionado a mulheres autistas, e isso se deve a causas clínicas e sociais. Estudos indicam que diferenças neurológicas entre homens e mulheres podem influenciar em diferenças nas características clínicas do TEA, levando as mulheres a desenvolverem mais interesses restritos ligados a aspectos sociais do que os homens.

Culturalmente, meninas são ensinadas desde cedo a se comportarem de forma específica em situações sociais. Um exemplo são brincadeiras em que cuidam de bebês (bonecas) que estão chorando e é necessário identificar se é fome, dor, ou se querem carinho —e então devem aprender a solucionar esse problema lhe oferecendo alimento, por exemplo. As brincadeiras de meninas simulam comportamentos sociais do dia a dia.

As garotas são incentivadas, desde cedo, a conversarem, demonstrarem afeto e outros tantos comportamentos sociais desencorajados em meninos. Outro fator para maior frequência do masking em mulheres é que elas têm uma tendência a corrigir o comportamento umas das outras e dão dicas do que seria adequado em determinadas situações e, em sua maioria, verbalizam mais seus sentimentos e emoções, além de serem mais atentas às pessoas ao redor. Determinadas culturas ensinam as meninas e mulheres a fazer melhor rastreio do ambiente e usar estratégias de camuflagem.

O custo emocional de ser aceito

"Mudando meu comportamento, fiz várias amizades e fiquei muito popular na escola. O problema é que era tudo mentira e fingimento. Depois de dois anos fui diagnosticada com ansiedade generalizada e síndrome do pânico", afirma Bianca. A exaustão emocional pode ser consequência da tentativa constante de forçar ser alguém que não é. O esforço que esses mecanismos exigem costuma resultar em quadros de estresse, ansiedade, depressão, fadiga e fobia social.

Somente quando teve contato com uma explicação sobre o masking que Bianca suspeitou sobre seu comportamento e, em conversa com a mãe, teve revelado o diagnóstico de TEA, que havia sido omitido por orientação médica. Aceitando quem é, ela passou a buscar não invisibilizar os traços que agora sabia que eram de autismo, mas abandonar o comportamento pode ser difícil. Bianca ainda não consegue deixar de forçar o olhar nos olhos das pessoas: "Eu fixo no contato visual e até esqueço o que a pessoa está falando", afirma.

Vale destacar que o masking é diferente de habilidades sociais e competências sociais que ajudam a socializar. A camuflagem gera sentimentos de desconforto no indivíduo que o pratica e são mantidos, na maioria das vezes, para tentar se ajustar a uma demanda social, evitando assim prejuízos no grupo de amizades ou no ambiente de trabalho, por exemplo. Já no âmbito de habilidades e competências, há a diminuição dessas dificuldades com o estabelecimento de comportamentos relacionados às habilidades sociais.

"O masking é uma ferramenta de defesa, de se colocar na posição neurotípica para sofrer menos capacitismo, o que não seria necessário se viéssemos em uma sociedade inclusiva", afirma Bianca.

Para os especialistas, melhorar e ampliar os serviços diagnósticos, terapêuticos e de conscientização da comunidade como um todo é fundamental para que pessoas com TEA não se sintam coagidas a mascararem suas características ou comportamentos. E ainda há lacunas acadêmicas quanto ao entendimento desse comportamento.

Fontes: Alda Batista de Oliveira, mestre em psicologia pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e especialista indicada pelo professor titular Antônio Roazzi; Katarina Kataoka, psicóloga doutorado pela UFPA (Universidade Federal do Pará) especialista indicada pelo professor titular Thiago Dias Costa; Nassim Chamel Elias, professor do departamento de psicologia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).