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Covid-19: falta de critério no manejo de recursos pode ter aumentado mortes

Tempura/iStock
Imagem: Tempura/iStock

Beatriz Azevedo

Do Jornal da USP

20/02/2021 10h17

A pandemia de covid-19 colocou o sistema de saúde global em uma situação caótica, há mais pacientes precisando de tratamento do que recursos disponíveis para isso. Para salvar o maior número de vidas, a alocação dos recursos escassos deveria ser direcionada por políticas públicas nacionais, o que não aconteceu no Brasil. A ausência de critérios para a escolha de quem receberá a intervenção pode ter contribuído para o elevado número de mortes.

As conclusões são do artigo covid-19: instruments for the allocation of mechanical ventilators — a narrative review, do Grupo de Pesquisa Bioética e Administração: Ensino e Assistência à Saúde, da Escola de Enfermagem da USP.

Situações extremas exigem uma diretriz clara sobre como escolher o paciente que receberá o ventilador. Os autores fizeram uma revisão da literatura sobre a alocação de recursos escassos e produziram 17 recomendações — entre elas, definir uma pontuação de priorização e critérios de inclusão — para a construção de um protocolo com instruções.

Em um cenário em que todos precisam receber os ventiladores, os critérios para a escolha não são mais clínicos e sim éticos, ressaltam os pesquisadores. As discussões sobre o assunto estão na mão de entidades regionais e a decisão sobre quem receberá os ventiladores varia de acordo com estado, município e hospital onde o paciente é tratado.

No Brasil, vários conselhos médicos debateram o tema e chegaram a alguns instrumentos. Entretanto, como não são parte de um plano nacional, vários locais determinaram prioridades diferentes, ou seja, se o profissional de saúde olhar dois documentos sobre o tema, encontrará diretrizes distintas, o que pode prejudicá-lo na escolha.

"Se eu tenho 20 pacientes precisando de um ventilador mecânico, qual será atendido? Quais serão os critérios? Eles são justos? É preciso debater sobre esse tema, por mais difícil que seja", diz ao Jornal da USP Marcelo José dos Santos, um dos autores do trabalho. Muitas vezes, a decisão acaba ficando a cargo do profissional de saúde, o que causa sofrimento moral muito grande.

Um dos impactos diretos da falta de normas nacionais nesse sentido é o número de mortes. Em uma situação hipotética, se um profissional da saúde encontra um caso muito grave de covid-19 e entrega o ventilador, as chances do paciente morrer de qualquer forma são muito grandes. Porém, se um paciente menos grave recebesse o ventilador, poderia sobreviver. Como não há para todos e o ventilador foi dado ao primeiro paciente, os dois morreriam, não apenas um.

"Se eu tenho 20 pacientes precisando de um ventilador mecânico, qual será atendido? Quais serão os critérios? Eles são justos? É preciso debater sobre esse tema, por mais difícil que seja", diz ao Jornal da USP Marcelo José dos Santos, um dos autores do trabalho. Muitas vezes, a decisão acaba ficando a cargo do profissional de saúde, o que causa sofrimento moral muito grande.

Um dos instrumentos encontrados no País é a idade. Isso significa que os idosos não receberiam ventiladores, caso necessário, para que o recurso seja direcionado a quem tem maior estimativa de vida e mais chances de sobreviver. Os autores destacam que isso é um tópico que precisa ser discutido com a sociedade.

"Há uma visão muito paternalista nessas discussões, os profissionais pensam que sabem o que é melhor para todos, mas isso precisa ser aberto para debate", diz Marcelo. Quem sofre o impacto direto são as pessoas, por isso precisam se envolver.

Além da idade, os ciclos de vida podem ser considerados na hora de estabelecer a prioridade no recebimento do ventilador. Assim, o recurso é dado a quem teve menos ciclos de vida — ou seja, viveu menos. Dessa forma, a idade não é o fato principal da decisão, mas sim a intenção de garantir ao jovem o mesmo número de ciclos de vida que um idoso teve.

A utilidade também pode ser um fator considerado. Por exemplo, se a decisão é entre um profissional da saúde e uma pessoa de outra área, a prioridade é do primeiro. Isso porque, se ele for salvo, há chance de salvar outras pessoas, no futuro.

Os pesquisadores fizeram uma busca sistematizada e encontraram 400 artigos sobre o tema. Do total, 15 artigos os ajudaram a chegar à tabela com as 17 recomendações.

Critérios apontados pelo estudo

  • Faça uma revisão extensa da literatura
  • Examine as estruturas éticas existentes
  • Fornecer uma base para as estruturas éticas escolhidas
  • Definir critérios de inclusão
  • Estabelecer critérios complementares ou não clínicos
  • Combinar sistemas de pontos e preditores de mortalidade, que devem ser validados, claros e objetivos em terapia intensiva
  • Definir uma pontuação de priorização
  • Estabelecer períodos de reavaliação
  • Use uma estrutura de priorização de princípios múltiplos
  • Permitir a participação das partes interessadas (especialistas, médicos, tomadores de decisão e sociedade) na definição da estrutura ética e dos critérios clínicos, não clínicos e de desempate
  • Estabeleça critérios de desempate
  • Definir tratamentos / opções alternativas para aqueles que não se beneficiarão do recurso
  • Desenvolva diretrizes específicas para crianças
  • Preste atenção à usabilidade do instrumento de triagem
  • Desenvolva um algoritmo para o instrumento de triagem
  • Tornar públicos a política e os critérios de triagem estabelecidos
  • Atualizar o protocolo periodicamente

Como avançar a discussão, no Brasil?

"Para o Brasil avançar nesse sentido é preciso que haja participação da sociedade, intermediada pelo governo", afirma ao Jornal da USP Rafael Rodrigo da Silva Pimentel, um dos autores do artigo. Ele destaca que a elaboração de instrumentos deve fazer parte de uma política pública de governo. Os critérios são importantes não só para salvar vidas, mas para impedir que ocorra discriminação e garantir a imparcialidade do profissional, na hora da escolha.

"Nós perdemos o momento de outras pandemias, como a H1N1. Outros países, como o Canadá, começaram as discussões anos atrás e nós ainda não temos nada de concreto", explica Marcelo. Ele teme que nós deixemos essa pandemia passar sem ainda ter discutido sobre isso.