Topo

Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


A vida com Tourette: relações sociais conturbadas, preconceito e chacota

David Anderson Alves relata dificuldades no dia a dia - Arquivo pessoal
David Anderson Alves relata dificuldades no dia a dia Imagem: Arquivo pessoal

André Aram

Colaboração para o VivaBem

09/01/2021 04h00

David Anderson Alves, 40, técnico de informática, é portador da Síndrome de Tourette desde os 2 anos de idade. São tiques incontroláveis, palavrões ditos sem intenção e caretas, que tornam a vida de alguém com o transtorno um desafio diário. A doença afetou sua vida social e afetiva, onde o preconceito vinha de todos os lados, sendo constantemente alvo de chacota a respeito de um distúrbio neuropsiquiátrico com tiques múltiplos (motores e vocais) que poucos conhecem e muito menos tem empatia. Até os dias de hoje, a intolerância ainda o acompanha, principalmente no mercado de trabalho. Abaixo, leia o depoimento que Alves deu ao VivaBem.

"Eu gosto muito de cozinhar, mas sempre que eu cozinho, me corto todo, então tenho sempre que manter as unhas grandes, para não cortar os dedos com a faca. Eu gostaria de poder dirigir, mas eu tenho consciência que não posso, porque, se eu estiver num carro e me distrair por um segundo, é o suficiente para acontecer um acidente.

Na década de 1980, quando era criança, fiz vários tratamentos, mas os médicos não sabiam o que era, diziam 'é tique nervoso, com o tempo isso passa', mas nunca passou. Eu só vim a descobrir o que era Tourette aos 24 anos, após pesquisar na internet, e então um médico me confirmou. Como ela não aparece nos resultados dos exames, acaba sendo difícil ser diagnosticada com 100% de certeza.

Os meus tiques

Eu posso dizer que tenho todos os tipos, não tem um mais predominante, mas existem as fases que algum se sobressai, de tantos anos até tantos anos. Existem alguns de criança que tenho até hoje, como balançar a cabeça, por exemplo, piscar bastante os olhos.

Os tiques motores são os mais comuns, como fazer careta, fungar, sacudir os braços. Além disso, a Tourette sempre vem acompanhada de mais alguma coisa, como TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade) e outros problemas mais sérios. Eu tenho TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo), muito intenso, por exemplo.

Alguns tiques eu diminui bastante com autocontrole, mas outros eu não consigo evitar ainda. O pior deles é a coprolalia, que é falar palavrões na hora errada, de forma incontrolável. É o pior porque deixa você socialmente mais afastado. E existem os tiques vocais como repetir frases que você ouve.

Preconceito desde sempre

Já sofri muito na infância. Preconceito de todos os lados: na família, porque me achavam maluco; na rua, as pessoas riam e me tratavam como doido; algumas mães não deixavam os filhos brincar comigo; na escola, uma professora disse para a minha mãe que não ia mais dar aulas para mim, que eu deveria sair da escola porque eu era maluco e ela tinha medo que eu fosse bater nela. Imagine uma adulta com medo de uma criança de 7 anos. Eu fui muito prejudicado, fiquei anos sem estudar por causa disso.

Se alguém com Tourette diz que não liga, está mentindo, porque essas pessoas entram em depressão, se sentem sozinhas, não têm autoestima e não acreditam nelas mesmas. Se é um adolescente, você já é inseguro, agora imagine um adolescente com Tourette? Isso não sai da nossa cabeça, não importa onde você vai ou com quem você esteja, sempre vem à mente: 'Será que essa pessoa está me olhando? Será que ela está me vendo fazendo tiques? Será que ela está me achando estranho? Ela está rindo de mim?'.

Eu aconselho, sim, fazer um acompanhamento psicológico. Na época eu não tive isso, até porque era muito difícil encontrar psicólogo público.

David Anderson Alves 1 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Alves teve seu pedido de aposentadoria recusado
Imagem: Arquivo pessoal

Limitações e restrições na vida com Tourette

Uma pessoa com Tourette nunca vai poder agir normalmente como as outras pessoas. Temos várias restrições. Eu posso citar em poucos segundos pelo menos 15 situações de periculosidade que em uma pessoa comum não teria, mas que em alguém com Tourette seria extremamente perigoso, que colocaria a vida dele e de outras pessoas em risco. A verdade nua e crua é essa.

No meu trabalho atual, o Tourette me prejudica quando eu tenho que montar uma máquina, quando tenho que fazer alguma coisa com precisão, bem devagar, às vezes eu corto os meus dedos também. No passado, eu mesmo tinha preconceito sobre isso, eu pensava 'tenho dois braços, duas pernas, consigo trabalhar', só que é muito fácil a gente imaginar, mas a verdade não é bem assim.

Se eu trabalho com público, como no meu último emprego de carteira assinada, nos momentos de tensão, as pessoas ficavam com medo de se aproximar, porque eu não parava de fazer careta, de piscar, não parava de fazer os tiques vocais, então tive que sair do trabalho. Ninguém me demitiu, quanto a isso todos os patrões foram excelentes, nunca sofri preconceito em ambiente de trabalho, mas eu mesmo, várias vezes, quando a Tourette estava 'atacada', que não conseguia sair de casa, eu ligava dizendo que estava doente.

A gente tem que trabalhar pelo menos 10 a 20 vezes mais do que qualquer outra pessoa, que é para a gente poder se sobressair, porque nós somos julgados pelos tiques. Mesmo que a gente faça as coisas 100% corretas, não importa, o que vai prevalecer é o cara que pisca, que treme, que grita.

Se você trabalha numa empresa e tem Síndrome de Tourette, nunca será um diretor. Infelizmente é isso que acontece. Se você tem Tourette, dificilmente você vai ser um supervisor, porque as pessoas não vão te levar a sério. Eu só queria que o nosso Congresso, nossos deputados, colocassem esses projetos para frente, que façam uma lei que inclua os portadores da Síndrome com o direito de ter ao menos uma aposentadoria. Nós não paramos em emprego nenhum, na verdade 80% de nós desistimos, não é exagero isso que estou dizendo, a gente desiste, a gente cansa.

Eu moro sozinho, tenho que me sustentar e eu não tive direito à aposentadoria, mesmo tendo comprovado que eu era incapaz de trabalhar, eu não tive este direito. Meu pedido ficou quase um ano em análise e foi recusado. Isso pesa muito. Sinceramente, não está dando mais, as coisas estão extremamente difíceis, mesmo que eu tenha 25 anos de experiência trabalhando com computador, eu não consigo ir para frente, não tenho como ir pra frente, como entrar no mercado de trabalho, numa empresa e ter o sonho de crescer lá dentro.

Várias vezes tive que sair do trabalho dizendo que estava passando mal, mas era mentira. Era a Tourette atacando, e quando ela ataca, é incontrolável. Eu sempre saía dos empregos, perdi muitas oportunidades de trabalho por causa disso, e na minha vida pessoal também. Muitas portas foram fechadas.

David Anderson Alves 2  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Para ele, o pior dos tiques é a coprolalia, que é falar palavrões na hora errada
Imagem: Arquivo pessoal

Nunca casei no papel, mas já 'me juntei' três vezes. Não deu muito certo, eu não tinha consciência disso, mas geralmente quem tem essa síndrome tem um temperamento explosivo. Estou sempre nervoso, é uma raiva que nunca passa. Após eu descobrir isso, comecei a me controlar bastante, nunca agredi ninguém, mas dar um grito é normal para quem tem Tourette. Durante anos eu aprendi a me controlar, me policio 24 horas.

Entenda a Síndrome de Tourette

A Síndrome se trata de uma doença neuropsiquiátrica, de início geralmente na infância. Normalmente acomete mais os homens e se caracteriza por comprometimento psicológico e social. Segundo Renato A. Chaves, neurocirurgião pela Famerp (Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto), especialista em cirurgia de cérebro e coluna, as causas não são 100% conhecidas, mas pesquisas científicas sugerem a existência de componentes genéticos e de anomalias em neurotransmissores cerebrais, principalmente na dopamina.

De acordo com ele, os sintomas mais comuns são fenômenos compulsivos, cacoetes que, muitas vezes, resultam em uma série repentina de múltiplos tiques motores e um ou mais tiques vocais, com duração de pelo menos um ano, tendo início antes dos 18 anos de idade. "Eles são subdivididos em simples e complexos. Começam por tiques simples, evoluindo para os mais complexos, variando de paciente para paciente". Os tiques pioram com situações de estresse e cansaço.

Ainda não existe cura, mas há uma série de tratamentos que controlam o distúrbio. Entre eles estão os medicamentos que regulam a serotonina e a dopamina, e a participação do paciente em processos terapêuticos, como terapias comportamentais e psiquiátricas.