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Ela perdeu dentes por violência doméstica, mas ONG reconstruiu seu sorriso

Viviane Arruda sofria agressões frequentes do ex-marido, o que a fez perder 11 dentes - Apolônias do bem/Divulgação
Viviane Arruda sofria agressões frequentes do ex-marido, o que a fez perder 11 dentes Imagem: Apolônias do bem/Divulgação

Giulia Granchi

Do VivaBem, em São Paulo

06/03/2020 04h00

O sorriso de Viviane Arruda, 44, era uma característica marcante em sua personalidade. Natural de União dos Palmares, no interior de Alagoas, a fotógrafa teve uma adolescência feliz, com carinho e apoio dos pais e um relacionamento e, até então, saudável com seu namorado.

As coisas começaram a mudar quando, aos 19 anos, Vivi, como gosta de ser chamada, decidiu oficializar a união com seu parceiro. "Minha mãe, que nunca foi contra o namoro, me disse que não queria que eu me casasse com ele. Na época, achei que era bobagem, porque ele sempre havia se mostrado um menino muito educado", conta.

Hoje, passados mais de 20 anos, Vivi conta que gostaria de ter ouvido a mãe. Dias após o casamento, o parceiro mostrou ser alguém que ela desconhecia. "Estava deitada, quieta, quando ele me perguntou o que eu tinha. Respondi que estava com saudade de casa e ele não aceitou. Me bateu muito, acertando meu rosto repetidamente", lembra.

Este foi o primeiro episódio de anos contínuos de agressão, prisão domiciliar e abusos. O sorriso, antes largo, já não aparecia mais. Os socos, chutes e cuspes na face tinham um motivo além da humilhação: o homem esperava que, machucada e com a visão prejudicada pelos golpes, a vítima não conseguisse sair para pedir ajuda.

Viviane Arruda - Apolônias do Bem/Divulgação - Apolônias do Bem/Divulgação
Imagem: Apolônias do Bem/Divulgação
Os hematomas sumiam e os cortes saravam, mas Vivi havia perdido permanentemente alguns dos dentes. Após dez anos, a alagoana conseguiu fugir com sua filha, levando apenas documentos. Ela decidiu recomeçar a vida e conseguiu um emprego como doméstica em uma casa de família. "Tive uma patroa muito gentil que pagou uma prótese dentária para mim. Fiquei extremamente grata", conta.

Mas três anos após a separação, enquanto esperava um ônibus em um local próximo a casa do agressor, Vivi foi surpreendida por alguém puxando-a por trás. "'Te achei', ele disse. Depois, me arrastou para a casa dele e me bateu durante dias. Quando acordei, já estava com a boca toda ensanguentada, sem os dentes", diz.

Mesmo com os olhos praticamente fechados pelos hematomas, Vivi conseguiu pular o muro e fugir.

Ela fez o primeiro boletim de ocorrência contra o agressor e, sem conseguir uma ordem judicial para mantê-lo longe, se abrigou com a filha na casa de uma conhecida.

Um novo —e permanente— sorriso

Apesar de livre da violência doméstica, Vivi ainda carregava marcas físicas e psicológicas de todos os anos de abusos. "Meu sonho era olhar no espelho e ver a antiga Viviane, quem eu era antes de tudo isso", lembra.

Ela procurou ajuda psicológica no Centro de Referência da Mulher Casa Eliane de Grammont, onde recebeu apoio e foi encaminhada para a ONG Turma do Bem, que atende gratuitamente diversos grupos em situação de vulnerabilidade que necessitam de tratamento odontológico.

A alagoana foi recebida em junho de 2016 no grupo "Apolônias do Bem", especificamente destinado a mulheres que sofreram casos similares ao dela.

O coletivo já atendeu mais de 1.000 mulheres desde 2012 e seu nome vem de uma personagem histórica, Apolônia, que viveu em Alexandria e morreu em 249, após ser presa, espancada e ter seus dentes quebrados e arrancados.

O quadro clínico de Viviane

De acordo com o dentista Daniel Bellacosa, voluntário da ONG, dos 32 dentes existentes na boca, Vivi não tinha 11 —faltavam sete na parte superior e quatro na parte inferior.

"Além disso, todos os dentes da maxila (parte de cima) estavam completamente quebrados, cariados, com grande quantidade de placa bacteriana e sem condições de mantê-los. Já na mandíbula (parte inferior), três dentes precisavam ser removidos e a paciente apresentava sangramento e inchaço na gengiva", explica.

O que o tratamento incluiu:

  • Orientação de higiene bucal, raspagem periodontal (remoção de tártaros e placas bacterianas) e profilaxia (limpeza) no início e no final do tratamento.
  • Restaurações e reconstruções em diversos dentes e extrações de alguns dentes da região da mandíbula (parte inferior).
  • Moldagem da boca para confecção de uma prótese total imediata da região da maxila (parte superior).
  • Extração de nove dentes em uma sessão única para instalação imediata da prótese total.
  • Nova remoção de tártaros e placas bacterianas, limpeza, acompanhamento da cicatrização da região óssea e reembasamento da prótese.

Tratamento também para a autoestima

Dentista Daniel e paciente Vivi - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O dentista Daniel Bellacosa, voluntário da Turma do Bem, ao lado da paciente Viviane Arruda
Imagem: Arquivo pessoal
Bellacosa aponta que a paciente da primeira consulta deixou de existir ao longo do tratamento. "No início, ela não sorria e não me olhava nos olhos, estava sempre cabisbaixa", lembra.

Ao longo dos três meses, Vivi foi ganhando confiança e, de acordo com o especialista, transmitia alegria e gratidão em todos os momentos.

O período também foi especial para o dentista. Segundo Bellacosa, ouvir a história da paciente o lembrou de sua mãe, que viveu episódios parecidos de diferentes tipos de agressões. "O fato de ela ter superado tudo isso e ter conseguido perdoar o ex-marido, me fez repensar e também perdoar meu pai", conta.

O que é comum ver nas bocas de mulheres vítimas de violência

Violência doméstica - Apolônias do Bem/Divulgação - Apolônias do Bem/Divulgação
Imagem: Apolônias do Bem/Divulgação
De acordo com Viviane Crespi, dentista voluntária responsável pelas triagens da ONG, a maioria das mulheres que sofreram violência apresenta dentes faltando, quebrados, cariados e com muita placa bacteriana.

"Por conta da violência, que também é psicológica, muitas mulheres perdem o autocuidado. Várias também sofrem privação financeira e são impedidas fisicamente de sair de casa, o que as impossibilita de realizar qualquer tipo de tratamento", aponta Crespi.

Vida nova para Vivi

Viviane Arruda - Apolônias do Bem/Divulgação - Apolônias do Bem/Divulgação
Imagem: Apolônias do Bem/Divulgação
Hoje, Viviane voltou a sorrir como antigamente. Ela fez um curso profissionalizante de fotografia, profissão que sempre sonhou em seguir, e exerce o ofício, inclusive, fotografando outras pacientes da ONG.

Vivi também tem um novo relacionamento, saudável, e conta que, apesar de comprometida, aprendeu, com as experiências passadas, a ser uma mulher totalmente livre. "Desde o começo deixei bem claro qual era o tipo de atitude que não aceitava e hoje vivo uma relação leve, de parceria", explica.

Em seus planos para o futuro estão os de se divertir muito, viajar o mundo, fotografar centenas de pessoas e não deixar nada nem ninguém abalar seu sorriso.