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Gustavo Cabral

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Virar cientista no Brasil para quê? O que realmente somos?

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Imagem: iStock

Colunista do VivaBem

01/06/2021 04h01

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Estamos passando por um momento histórico em que nós, cientistas, nunca imaginaríamos que seriamos tão bem-vistos pela sociedade. Aliás, antes disso nunca imaginávamos que, um dia, realmente seriamos vistos, pois o cientista sempre pareceu, para a visão popular, uma figura estranha e distante do dia a dia das "pessoas normais". Isso sempre gerou uma dificuldade de compreensão sobre o papel dos cientistas, para que a gente realmente serve e o que fazemos.

Por exemplo, muitos pensam que nossa utilidade é criar coisas ou sermos consultados para tirar dúvidas, nada muito mais do que isso. Ainda há programas de TV que levam pessoas para fazer shows, que parecem brincadeiras infantis, com reações químicas para a plateia achar bonitinho. Isso afeta demais a importância da ciência!

Lembro-me que, quando passei no vestibular para cursar ciências biológicas, uma tia veio me dar os parabéns perguntando: "como você vai ganhar dinheiro estudando isso?". Estranho, não? Mas ela não estava tão errada assim —discutiremos a falta de suporte financeiro depois... Outra situação engraçada é quando sou apresentado como imunologista doutor. As pessoas geralmente falam, felizes, algo do tipo: "Olhe só, ele é médico!". Daí, quando eu digo que não sou médico, a decepção fica estampada no rosto de muitos, ainda hoje.

Mas isso é o mínimo! Quem aqui sabe o que realmente é um cientista? O que somos capazes de fazer e de falar, ou de orientar? Qual o salário que ganhamos? Esse tipo de coisa, vocês imaginam?

Bom, vamos lá! Primeiro que, para sermos "cientistas" —ou seja, fazer pesquisas—, após a graduação na faculdade, devemos fazer uma baita carreira de pesquisa para poder entrar em uma universidade como professor. Depois disso, temos de buscar projetos para desenvolver uma pesquisa. Mas não deixamos de dar aula. Para mim ok, pois adoro dar aula, mas para fazer ciência é complicado administrar as duas funções. Principalmente porque, grande parte das vezes, não temos um pagamento para sermos pesquisadores, recebemos só pelas aulas que damos —e, quando o trabalho de pesquisa adiciona algo financeiramente em nosso salário, é algo tão pequeno que nem vale citar, parecerá piada.

Em institutos como Fiocruz e Butantan nós, cientistas, entramos para trabalhar como pesquisadores, mas ainda assim tempos de dar aula, geralmente nas pós-graduações, e orientamos a garotada da iniciação científica, assim como mestrado, doutorado e pós-doutorado. E o salário muda? Não! Ou seja, minha tia não estava totalmente errada, embora eu tenha me sentido ofendido na época e "mostrei" que conseguiria pagar minhas contas fazendo ciência.

Tem mais, pessoal, não acabou! Outro exemplo que soa "engraçado" quando, muitas vezes, sou procurado para dar entrevistas ou escrevo algo em minhas redes sociais. Parece que as pessoas acham que só estou preparado para fazer e falar de vacinas e pronto! Quando entro em outros assuntos que envolvam a sociedade, parece que sou alguém desqualificado a falar, principalmente quando quero falar sobre questões políticas, que podem ir muito além da saúde pública.

Até entendo, em parte, pois a visão das pessoas é que alguém com um currículo como o meu —ou seja, mestrado, doutorado, pós-doutorados— geralmente foi preparado para fazer aquela carreira acadêmica, veio de "berço" para se tornar um técnico da ciência e acabou virando um cientista de escritório, de nome e de fama, não tem questões sociais para reivindicar.

Porém, as coisas não são bem assim. Alguns de nós saímos de condições muito menos favorecidas e conseguimos ter uma grande formação. Meu exemplo é clássico, pois tive que "comer o pão que o diabo amassou" para poder fazer uma graduação e, para me manter, tive de me envolver no desenvolvimento científico, pois tinha bolsa de apoio à ciência. Isso me ajudou a "fazer apenas ciência". Sim, não foi por sonhos, foi por necessidade mesmo!

Com isso, trabalhei com saúde pública e meio ambiente em comunidades quilombolas (remanescentes de escravos que fugiram para locais chamados quilombos), depois me tornei imunologista mestre e doutor em excelentes universidades; fiz três pós-doutorados em universidades renomadas, como Universidade de Oxford, na Inglaterra. Mas, antes de toda essa formação científica, fui feirante e trabalhei na roça com meus pais, que mal tinham condições para manter o básico em casa.

Dessa forma, fico pensando na arrogância de algumas pessoas que vêm me falar que não devemos nos envolver em política, pois isso não pertence a nós, cientistas?! É de lascar!! Será que minha formação de vida e acadêmica não me permitem ter essa visão ampla de uma sociedade em que usamos a ciência como motor propulsor da economia e como estratégia de saúde pública? Como alguém que consegue ver a organização social desde um padrão popular ao padrão "elitizado" intelectualmente?

Quer um exemplo bem clássico da política em minha vida e que aconteceu com muitas outras pessoas?

Quando eu era garoto, minha mãe não votou no candidato que se elegeu como prefeito de nossa cidade. Normal isso, não é? O voto é livre... Mas sabe o que aconteceu? Minha mãe, uma senhora concursada para limpar escola pública, foi despedida por não ter votado no prefeito. Sim, mesmo concursada! Claro que, com a ajuda de outros políticos adversários, minha mãe e outras pessoas que eram concursadas voltaram ao trabalho após quase um ano de luta judicial. Sim, um ano que passamos dificuldade básica de falta de alimento em casa. Daí, tenho que escutar que não devo me envolver em políticas!!

Mas, como falei, nós cientistas temos ganhado muito espaço! "Wow, isso é ótimo!" Vamos encarar a realidade: nem tanto assim, tá bem?! Porque a ciência no Brasil é feita basicamente com bolsa de pesquisa, algo que está escasso. Dessa forma, sabe quem vai poder fazer pesquisa? Quem tem condições de fazer uma carreira acadêmica com os pais mantendo os estudos, ou seja, a classe menos favorecida está se lascando novamente. Além disso, nós que lideramos projetos de pesquisa teremos mais dificuldades em buscar as melhores mentes para fazer ciência, pois se não oferecermos bolsas, vamos ter que ficar com quem tem dinheiro e não, necessariamente, com quem tem mais talento. Algo que nem sempre é o melhor para a sociedade, pelo menos a sociedade real brasileira, mas para a sociedade que tem o dinheiro real, vai ser ótimo. Dessa forma, continuamos condenando pessoas, como o Gustavo de origem, a servir, a sermos subservientes!

Acharam muito tudo isso? Calma, ainda quero falar mais um pouquinho!

Tem outra questão superimportante: muitos de nossos cientistas já foram ou estão indo embora do Brasil, pois não têm condições de trabalho nem reconhecimento financeiro. Dessa forma, gastamos tanto para formar um grande cientista e entregamos a outras nações que vão aproveitar todo potencial, sem ter gastado um centavo na formação. Desta forma, tornar-se cientista no Brasil para que?! Para ficar penando e sendo desrespeitado aqui, ou se mandar para viver em outro país?! Ou ter "visibilidade" e respeito em momentos de catástrofe?!

Por fim, estamos mesmo lascados a curto, médio e longo prazo se não tivermos um projeto nacional de desenvolvimento social, econômico e humano, tendo como base a ciência. Agora, se a ciência for a base, o Brasil pode se tornar um país competitivo internacionalmente e com uma sociedade capaz de opinar sobre muitos assuntos com propriedade, não com achismo.

Desta forma, me recuso a aceitar que só devo falar sobre vacinas, diagnósticos, saúde pública, sem opinar sobre o Brasil real, pois não sou cientista de escritório e ar-condicionado que aparece na TV para exalar arrogância através do conhecimento, passado de forma a dificultar ainda mais a compreensão social sobre a ciência.